Foi um Padre Anselmo Borges “sem papas na língua”, tal como já nos habituou, aquele que o labor entrevistou aquando da sua passagem por S. João da Madeira este último sábado

 

Quando e porquê decidiu ser padre? Se não fosse padre, o que seria?

Tinha 19 anos, quando me decidi. Desde muito jovem que a questão do sentido, do Sentido último da existência se me colocou. Afinal, morremos e acaba tudo? Foi tudo para nada? Aí tem a razão fundamental de ser padre: anunciar que, em Jesus, Deus se revelou como Amor, Fonte da vida que nunca nos abandona nem mesmo na morte. Na morte, não caímos no nada, pois entramos na Vida plena de Deus.

Se não tivesse sido padre, talvez fosse advogado.

Já alguma vez se arrependeu por ter enveredado pelo sacerdócio?

É claro que, ao longo da vida, tive tentações e cometi erros, mas nunca me arrependi da opção que tomei, e que tem a ver com o essencial.

Por que não seguiu “carreira”?

Não tinha jeito para isso. Aliás, na Igreja não tem sentido fazer carreira. O Papa Francisco está constantemente a afirmar que o carreirismo é a peste da Igreja.

O que faz no tempo livre?

Tempo livre? O que quer dizer tempo livre? Adoro passear num passadiço junto ao mar, sempre que estou em Valadares, no Seminário da Boa Nova, onde resido: lá medito e contemplo o oceano e, à noite, o alfobre das estrelas. Dá-me imenso prazer jantar com amigos e um bom vinho. Quando posso, vou à terra que me viu nascer. O ser humano é como uma árvore: tem raízes e está aberto a tudo. A música clássica exalta-me, pois, a música é o divino no Mundo.

“Quem não acredita em Deus fica com o sofrimento e sem esperança”

Quem é Deus? Se Deus ama os seus filhos por que “permite” que haja tantas guerras, catástrofes naturais, doenças incuráveis?

Deus é o Mistério último da realidade, Fonte criadora de tudo quanto existe e Sentido último de tudo, que nunca nos abandona e nos conduz sempre pela mão, como Pai querido e Mãe querida.

A pergunta que faz refere-se ao mal e ao sofrimento no mundo, que levam alguns ao ateísmo. Que resposta? Olhe: Deus não pode criar um mundo infinito; o mundo é necessariamente finito e, por isso, nele há becos sem saída, há choques e sofrimento. Mas quem não acredita em Deus fica com o sofrimento e sem esperança. Quem acredita sabe que o mundo está em processo e que a última palavra pertence a Deus e essa palavra é uma palavra de salvação.

Também há o mal provocado por nós, pela nossa liberdade, guerras, por exemplo. É preciso combater esse mal pelo qual somos responsáveis.

Revê-se na Igreja em geral e na Igreja portuguesa em particular?

Pertenço à Igreja e procuro fazer o melhor para que ela se aproxime o mais possível do Evangelho de Jesus. Evangelho quer dizer notícia boa e felicitante para todos. Mas a Igreja precisa de reformas fundas, a começar pela reforma da Cúria Romana, que possivelmente é responsável por mais ateus do que Marx, Nietzsche e Freud juntos. A Igreja precisa de estruturas mais democráticas, com a participação de todos: o que é de todos deve ser decidido por todos.

A Igreja em Portugal parece-me demasiado passiva, quase paralisada, com um clero frequentemente inculto, desadaptado do mundo (basta ouvir as homilias dos padres).

Concorda quando se diz que a juventude está arredada da Igreja? Se sim, o que fazer para contrariar essa realidade?

Basta estar de olhos abertos e atento para constatar que a juventude anda muito arredada da Igreja.

A Igreja tem de ir ao encontro da juventude e ouvi-la nos seus anseios e esperanças. Não pode só pregar, exigir e condenar. Quantos padres e bispos ouvem realmente os jovens?

Ontem, dia 3 de outubro, começou em Roma um Sínodo (encontro de bispos de todo o mundo) precisamente sobre os jovens e o Papa quer que seja não só sobre os jovens, mas também com os jovens e para os jovens. Por isso, teve longos encontros com representantes de jovens de todo o mundo e alguns nem eram católicos. Desses encontros resultou um documento para o Sínodo, no qual os jovens pedem uma mudança radical na Igreja e que o Vaticano enfrente de modo concreto temas controversos como a homossexualidade e as temáticas de género. A Igreja católica não pode ignorar que as novas gerações vivem distanciadas da moral sexual católica. E que contributos a Igreja pode dar quanto à insegurança nas condições laborais e a precariedade social?

Nota importante: neste Sínodo, estão a participar também dois bispos chineses, o que é possível após o acordo histórico assinado no passado dia 22 de setembro entre o Vaticano e Pequim. A República Popular da China tinha cortado relações diplomáticas com o Vaticano em 1951.

É a favor da ordenação de mulheres e/ou do casamento dos padres? Aceita a homossexualidade na Igreja?

Sim, sou favorável à ordenação de mulheres, porque Jesus não as discriminou e, portanto, a Igreja também as não pode discriminar. A Igreja não pode continuar machista nem misógina.

O celibato deve ser opcional e não obrigatório. Repare: São Pedro, o primeiro Papa era casado e ao longo do primeiro milénio da Igreja o celibato não era obrigatório. A lei do celibato só começou no século XI e só se impôs verdadeiramente no século XVI, com o Concílio de Trento.

Os homossexuais também não devem ser discriminados.

Casos de pedofilia são “um horror e uma catástrofe”

Qual a sua opinião sobre os cada vez mais casos de pedofilia que têm vindo a público?

R. É um horror e uma catástrofe. Como acentua o Papa Francisco, para ela tem de haver tolerância zero. E é necessário julgar os prevaricadores, colaborando também com a justiça civil.

Penso também que se deveria abrir os arquivos e, por uma vez, respeitando evidentemente a honra e os direitos das pessoas, também o direito à presunção de inocência e à defesa, apresentar relatórios do que realmente se passou.

Como descreve o atual Papa? Identifica-se com a sua pessoa?

O Papa Francisco é uma bênção para a Igreja e para a Humanidade. Sabe qual o segredo? Ele é um cristão, faz como Jesus fez, aproximando-se de todos, a começar pelos mais frágeis, pobres, abandonados. Ele faz a síntese de franciscano (lá está a simplicidade, a ternura, a fraternidade, o diálogo com todos, o amor à natureza…) e de jesuíta (sabe o que é a política e geoestratégia…).

Só posso e devo apoiá-lo contra os seus adversários e até inimigos.

Neste momento, qual é o maior desafio do Papa Francisco?

O maior? Tentar fazer com que os católicos se convertam e sejam mais cristãos, a começar pelos cardeais, bispos e padres.

Um bom católico tem de ir todos os domingos à missa?

A questão não é “ir à missa”, mas celebrar em conjunto com os outros a alegria de pertencer à família de Deus, dando graças e pedindo força para a nova semana. A missa não deve ser vista como uma obrigação, mas como uma festa de encontro com os outros e com Deus, o Deus que se revela em Jesus no seu amor por todos até á morte.

Como encara a morte? Há vida para além da morte?

A morte é um mistério: ninguém sabe o que é morrer, ninguém sabe o que é estar morto… É o impensável que nos obriga a pensar e é o pensamento sadio da morte, na consciência do limite, que nos obriga a viver dignamente, distinguindo entre o que verdadeiramente vale e o que não passa de vaidade…

Creio firmemente que a vida não acaba na morte. Na morte, repito, não caímos no nada, mas entramos na plenitude da vida em Deus.

E inferno? Há?

O inferno não faz parte do Credo, que é o símbolo e a síntese da fé cristã. Não acredito que haja inferno; pelo contrário, espero que todos os homens e mulheres se salvem. Veja: não há proporção entre a nossa vida terrena, temporal, e a condenação eterna no inferno. Mas, por outro lado, a nossa vida neste mundo tem de ser tomada a sério e, por isso, aquelas possibilidades que neste mundo nós não realizarmos Deus não as poderá elevar à plenitude. Portanto, há salvação para todos, mas a pessoa que por sua culpa não realizou possibilidades de bem que tinha estará eternamente menos realizada do que poderia.

Acredita num fim do Mundo, apocalíptico, como tantas vezes ouvimos os mais velhos dizerem?

Não acredito nesse fim do mundo, tantas vezes anunciado até por algumas seitas, que falam, por exemplo, das profecias de São Malaquias que anunciariam que Francisco seria o último Papa.

Aliás, a palavra apocalipse é muitas vezes mal interpretada, como se fosse algo de terrível. O Apocalipse é o último livro da Bíblia e é uma palavra grega que quer dizer revelação, mas no sentido positivo, revelação final do mistério de Deus enquanto salvador.

Neste sentido, haverá um fim do mundo. Quando e como ninguém sabe. Mas os cristãos acreditam que haverá um “céu novo e uma nova terra”, como diz o livro do Apocalipse.

“O milagre de Fátima são os milhões de pessoas que lá vão”

Por que diz que Nossa Senhora não apareceu em Fátima? E, assim sendo, o que leva a que aquele local seja cada vez mais frequentado por pessoas de todo o Mundo? O Padre Anselmo tem por hábito ir ao santuário?

Porque aparição significa uma manifestação visível para todos. Por exemplo, se estivermos numa sala e entrar alguém é uma aparição, porque todos os presentes verão essa pessoa que entra.

Em Fátima, não houve aparições neste sentido, até porque Nossa Senhora agora não tem um corpo visível. Mas aceito que os Pastorinhos tenham feito uma experiência religiosa real, mas como crianças e à maneira de crianças e enquadrada na experiência que faziam ouvindo os pais e os pregadores que pregavam o inferno… Veja: Que mãe mostraria o inferno a crianças tão pequeninas?

O milagre de Fátima são os milhões de pessoas que lá vão e que vão com fé à procura da proteção de Nossa Senhora. Sabe? Ela é a Mãe. Quem não gosta da mãe? E Nossa Senhora é a Mãe de Jesus e nossa Mãe também.

Fui ordenado padre em Fátima e quando lá vou fazer conferências também vou à Capelinha e rezo, claro.

Vê Fátima como uma “máquina de fazer dinheiro”?

Cai lá muito dinheiro e penso que deve haver prestação de contas e transparência. Os fiéis têm o direito de saber para onde vai o dinheiro.

“É lamentável ver famílias inteiras a dedarem no telemóvel”

Qual a sua opinião sobre as redes sociais? O que sente quando vê o telemóvel junto aos talheres num restaurante?

Como tudo o que é humano, também as redes sociais têm uma dupla face: positiva e negativa. Já viu o positivo da Internet como meio de acesso rápido à informação? Mas é um meio. E as redes sociais podem ser excelentes meios de comunicação, encomenda de livros, etc.. Mas cá está: são meios que devem ser utilizados de modo conveniente e racional. Já viu que aquilo pode ser também um instrumento de calúnias, de barbaridades, de imensa estupidez à solta, tanto mais quanto muitos se escondem no anonimato?

Sim. É lamentável ver famílias inteiras a dedarem no telemóvel… E não falam uns com os outros. Ora é preciso distinguir entre o real e o virtual e as pessoas precisam de conversar umas com as outras.

Outra coisa: é preciso ler livros. Quem viver só da internet, sem ler livros, pode cair num tsunami de informações, mas, depois, não sabe tratar e organizar a informação e cai no caos. Um dos perigos das redes sociais é exatamente a dispersão e a fragmentação…

Qual a maior ameaça e o maior desafio da Europa neste momento?

É ela própria, porque não acredita nela mesma e há falta de estadistas. Já viu? Onde é que se vive tão bem como na Europa, com respeito pelos direitos humanos, segurança social, etc.? A Europa faz falta ao Mundo por causa dos seus valores humanistas, solidariedade, consciência da dignidade da pessoa humana. Mas, num Mundo cada vez mais globalizado, a Europa precisa de uma verdadeira união, com estruturas federativas ou confederativas. Sem isso, torna-se insignificante no mundo. Veja: a Alemanha, por exemplo, é grande na Europa, mas sozinha, num mundo global, podendo tornar-se quase irrelevante.

E a maior ameaça da Humanidade? 

A Humanidade tem muitas ameaças pela frente. Apresento duas fundamentais, quando me fala em extinção: há armamento atómico suficiente para destruir o planeta e acabar com a vida na Terra e, por outro lado, se não tomarmos medidas urgentes do ponto de vista do ambiente, da ecologia, corremos o risco de a Terra, que esteve sem nós milhões de anos (nós somos recentes na terra), nos excluir dela.

Eu confio que tenhamos capacidade de pôr termo a estas ameaças de real possibilidade de extinção.

Encara a inteligência artificial como uma ameaça?

Este é um tema imenso. Mais uma vez, há aspetos fantásticos para o bem da Humanidade: no campo da medicina, por exemplo, e de ajudas imensas no campo do trabalho, da aprendizagem, de apoio a pessoas idosas… Mas há, quando pensamos nas NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas e do cérebro), na sua confluência e interligação exponencial, problemas imensos, que têm a ver com o chamado transhumanismo e mesmo o pós-humanismo. Pense-se no perigo do eugenismo, pense-se no que significará, por causa da robótica, viver numa sociedade sem trabalho…

Defende um Plano Marshall para África. Pode concretizar essa sua ideia?

Com esta proposta, apenas quero chamar a atenção para os problemas gigantescos que as migrações, concretamente atendendo ao desastre africano, não só por causa das guerras, mas também do subdesenvolvimento e da desertificação, vão colocar ao Mundo, nomeadamente à Europa. Precisamos de tomar consciência de que é urgente fazer algo por África, para que os africanos se possam desenvolver lá, nos seus países.

Já sofreu represálias, inclusive da Igreja, por causa das suas tomadas de posição críticas?

Represálias é uma palavra excessiva. Mas o meu nome estava nos arquivos da PIDE e alguns aborrecimentos a hierarquia da Igreja me terá causado.

Anselmo Borges

Anselmo Borges nasceu em Paus (Resende) em 1944. É padre da Sociedade Missionária Portuguesa, doutorado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, onde na Faculdade de Letras é docente, e licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma.

Além disso, tem o D.E.A. (Diplôme d’ Études Approfondies) em Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e é também professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e na da Universidade de Coimbra. É ainda colunista do Diário de Notícias.

São já várias as suas obras publicadas, todas com inúmeras edições. Por exemplo, Janela do (In)visível; Corpo e Transcendência; Deus e o Sentido da Existência; Deus, Religiões, (In)Felicidade; Francisco. Desafios à Igreja e ao Mundo.

 

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