Estivemos à conversa com uma família síria, acompanhada pela Cruz Vermelha, que teve de passar por isto e muito mais
Já imaginou ouvir constantemente o barulho de bombas? Já imaginou o que é ver o seu país ser destruído a cada dia que passa? Já imaginou o que é ter de deixar a sua casa, família e amigos sem olhar para trás? Já imaginou o que é querer voltar e não poder porque não é seguro? Já imaginou o que é ter de ir para outro país e depender da ajuda de outrem? Esperamos que não tenha sequer de imaginar, muito menos de viver qualquer uma destas situações. Infelizmente, há pessoas que as viveram, vivem e continuarão a viver até a guerra acabar.
Nós estivemos com uma família síria, acompanhada pelo Centro Humanitário da Cruz Vermelha de S. João da Madeira desde julho de 2017, que deu o seu testemunho sobre o que viveu nos últimos anos. O nosso primeiro contacto com esta família foi precisamente na ceia de Natal realizada pela instituição em dezembro do ano passado. Nessa conversa, os pais tinham dificuldade com a língua e estavam desempregados e os filhos falavam com alguma facilidade a nossa língua e gostavam “um bocadinho” de S. João da Madeira e de Portugal. E porquê só “um bocadinho”? Primeiro, a casa deles será sempre a Síria. Em segundo, tinham amigos na escola, mas não onde vivem. O que mudou quase um ano depois? A mãe entende melhor a Língua Portuguesa do que fala e o pai fala melhor a nossa língua do que entende. Por isso, complementam-se. Os filhos já passaram de gostar “um bocadinho” para “um bocado” de S. João da Madeira e de Portugal.
A mãe, Hassna Qaser, sabe costurar muito bem e cozinhar ainda melhor, mas não conseguiu um trabalho que pudesse fazer a partir de casa até porque a aprendizagem da nossa língua continua a ser um entrave. O pai, Mahar Saqa, já esteve a trabalhar numa empresa até acabar o contrato. Neste momento, está à procura de trabalho e ia ter conhecimento de uma nova proposta no dia seguinte à nossa conversa, dia 26 de outubro, junto do Instituto de Emprego e Formação Profissional.
Os filhos Anas, o mais velho, Abdullah, o do meio, e Reem, a mais nova, estão integrados. E aqui talvez o fator idade tenha um peso acrescido porque a adaptação foi muito mais fácil para os dois mais novos e um pouco mais difícil para o mais velho.
Anas gosta da escola e tem amigos, mas “não gosto de estudar”, disse durante a conversa com o nosso jornal, não tendo ajudado o tempo que perdeu de escola com as transições entre Síria, Turquia e agora Portugal. Anas preferia trabalhar. Se os pais deixarem, quer voltar até ao fim do ano para junto da avó e da tia que tem na Síria.
Os irmãos mais novos gostam de andar na escola e têm muitos amigos. No caso de Reem, é “uma das melhores alunas da turma”, deram a conhecer Joana Correia, diretora da Cruz Vermelha, e Iolanda Santos, assistente social voluntária desta instituição, que acompanha a família quase que diariamente e a quem recorrem para resolver qualquer problema.
“A vida era muito difícil na Síria”. Se um dia a guerra acabar, “voltamos”
A conversa com a família aconteceu na casa onde estão a viver e não nas instalações da Cruz Vermelha, tal como estávamos à espera, e foi mediada pelos filhos que ajudavam a traduzir as questões e respostas entre o labor. Uma conversa acompanhada de baklava de pistácio e café sírio cujos produtos compram numa loja no Porto, onde costumam deslocar-se para rezar, uma vez por semana, a uma das duas mesquitas lá existentes.
E como era a vida deles na Síria? Hassna era dona de casa, Mahar trabalhava numa empresa inglesa ligada ao têxtil, e três, dos seis filhos, andavam na escola que era ao lado da casa da família. Os dois filhos mais velhos acabariam por falecer na Síria devido a uma doença cardíaca hereditária desconhecida até aquele momento. Os pais quando viram que o quarto filho mais velho começou a ter os mesmos sintomas que os outros dois e não tinham apoio médico devido ao clima de guerrilha vivido no país, pediram ajuda e foram levados de emergência da Síria para a Turquia, onde viria a falecer. A mesma doença viria a ser detetada nos restantes irmãos. No período de cinco anos que estiveram na Turquia, apenas regressaram uma vez à Síria para visitar a avó. Nunca mais lá voltaram desde então.
Mais tarde, o estado de saúde dos três filhos restantes começou a piorar. Nesse momento, os pais, depois de já terem perdido três filhos, dirigiram-se à Unicef em Ancara que recomendou a sua integração num programa ao abrigo da Cruz Vermelha em Portugal que tinha a garantia de uma melhor reposta em termos de saúde para o problema genético da família. A “sede nacional contactou as delegações que tinham capacidade para receber a família, nós dissemos estar disponíveis”, recordou Iolanda Santos, assistente social da Cruz Vermelha, ao labor.
Desde esse momento, tiveram 15 dias para preparar a casa com tudo que era indispensável e todos os processos e mais alguns essenciais para a integração desta família em S. João da Madeira.
Um processo que viria a demonstrar ser “minimamente fácil a nível local, mas mais complicado a nível nacional porque é muito burocrático”, admitiu Iolanda Santos, explicando que “eles não entendem a demora, mas é normal ser assim em Portugal”.
As crianças começaram por frequentar o campo de férias da Associação de Jovens Ecos Urbanos que lhes fez “super bem” e depois começaram com a “escola normal”, relembrou Iolanda Santos. Uma das conquistas muito importante para esta família foi a aquisição de um carro em agosto deste ano que mudou por completo a sua autonomia. Eles convivem muito com as duas famílias sírias acompanhadas pelo Município e outras famílias integradas noutros concelhos.
A adaptação da família foi mais fácil na Turquia devido às semelhanças entre a língua, comida e costumes, explicou Mahar, descrevendo que em S. João da Madeira as “pessoas são boas. Todos amigos. As pessoas respeitam muito”. Ao contrário de outros países, como França onde têm amigos que são “maltratados”, revelou Mahar ao labor.
Por sua vez, Hassna aproveitou o momento para “agradecer por tudo” ao Centro Humanitário da Cruz Vermelha. “A vida era muito difícil na Síria” devido ao barulho constante das bombas que provocava “medo” sobre quem ou quê ia ser um dano colateral daqueles ataques diários, assumiu Hassna. Se um dia a guerra acabar, “voltamos”, afirmaram quase em consonância, ao labor.
Cruz Vermelha vai acolher dois paquistaneses em novembro
O protocolo da Cruz Vermelha com esta família tem uma duração de 18 meses e termina dentro de dois meses, causando preocupação junto de Mahar e Hassna pelo facto de estarem desempregados. Caso não consigam emprego até lá, o Centro Humanitário terá de acionar algum tipo de apoio até que consigam ser independentes financeiramente, informou Iolanda Santos.
O Serviço de Estrangeiros Sem Fronteiras deu uma autorização com a validade de três anos a esta família que pode ser renovada se quiserem permanecer em Portugal.
Entretanto, “existem outros dois refugiados que virão em breve e estarão ao abrigo do protocolo da Cruz Vermelha, mas não são sírios. São paquistaneses. Vieram no ´Aquarius 2´, que desembarcou em Malta”, anunciou a diretora Joana Correia ao labor.
A chegada dos refugiados paquistaneses está prevista para o mês de novembro, confirmou Joana Correia.
Município acompanha duas famílias sírias
A Câmara Municipal de S. João da Madeira acolheu e acompanha duas famílias sírias, com cinco elementos cada uma, com quem pedimos para conversar, mas não recebemos uma resposta a esse pedido até ao fecho da edição.
Embora o presidente da câmara, Jorge Sequeira, tenha revelado esta informação em “off the de record” durante a apresentação do orçamento de 2019 à comunicação social, o labor já tinha conhecimento da mesma.