“Sermos nós próprios e não o que é suposto sermos”, dizes num dos textos do teu livro. Sempre pensaste e foste assim?
Não. Acho que só comecei a ser assim ou a tentar ser assim quando frustrei a ideia que construí de mim próprio a partir do olhar das outras pessoas e de resultados que ia tendo a vários níveis fosse o escolar, o afetivo ou outro qualquer. E isso aconteceu já perto da idade adulta. Percebi que o edifício que tinha construído como representação de mim próprio estava prestes a ruir e isso além de ter acarretado uma depressão forte fez-me ter de aceitar que a minha identidade ia ser construída pedra a pedra com os escombros desse mesmo edifício. A partir daí fui construindo uma casinha que já senti como minha e, entretanto, ao longo da vida tenho vindo a perceber que mesmo essa casinha pode, pode não, vai sendo transformada ao longo do tempo porque há sempre espaço para aprofundares essa dimensão pessoal radicada naquilo que sentes. Pensa por exemplo em dançar. Todos nós em determinada altura da nossa vida tivemos alguma preocupação com o que os outros estariam a pensar de nós quando nos púnhamos a dançar. E porquê? Porque a dança é talvez das atividades da nossa vida em que nos expomos mais ao ridículo dentro daquilo que é o conceito convencional de ridículo. E dançar é precisamente aceitar de bom tom e de bom grado essa queda no ridículo. E é dos exercícios mais incríveis de autenticidade. E o facto de gostar muito de dançar tem me levado a descobrir coisas fabulosas, tem-me levado a viajar a sítios que não suspeitava que existissem, obviamente sítios mentais, e tem-me levado a perceber que esse caminho de sermos nós e não aquilo que é suposto sermos é um caminho sem fim.
“Acho que o erro é exatamente aquilo que nos faz progredir”
Metes muitas vezes “Os pés pelas mãos”?
Muitas. Vejo muita gente preocupada com o erro. Eu sou um poço de erros. E vivo bem com eles. Acredito que temos em nós uma imprevisibilidade a que muitas vezes fechamos portas precisamente com o objetivo de nos maquinizarmos, de nos tornarmos à altura das exigências, que lá está, os outros têm para connosco. E acho que o erro é exatamente aquilo que nos faz progredir. Incomoda-me muito as pessoas “perfeitinhas” ou que querem ser “perfeitinhas”, não lhes acho piada nenhuma. Sempre que me apaixono por alguém, sempre que me interesso por alguém, a base dessa paixão, desse fascínio, é um erro, é um grão de loucura, é uma carta fora do baralho. Portanto, a ideia de meter os pés pelas mãos é excitante, altamente atraente, é muito engraçada. Gosto muito disso.
Podias ter pedido a qualquer pessoa para apresentar o teu livro, mas escolheste os teus pais. O que te levou a fazer esta escolha pouco comum?
Precisamente porque não quero cortar com o meu passado. Isto até pode parecer algo contraditório, mas a verdade é que quando rompo com essa identidade que tinha construído de mim mesmo até determinada altura não queria de maneira nenhuma esquecer esse passado. Não queria negar tudo aquilo que precedeu um estádio de mudança, um fulcro evolutivo na minha vida porque sem esse tempo anterior o fulcro não seria evolutivo, estaria a partir do nada. É muito mais fácil mudares a partir desse nada, por isso muita gente quer mudar de cidade, começar do zero, essa ideia é muito comum, precisamente porque é mais fácil reconfigurares a tua matriz fora de quem te conhece desde sempre do que com essas pessoas a avaliar a tua mudança. Eu quis que os meus pais não só testemunhassem, mas de alguma maneira apoiassem esse caminho. E para mim foi excelente perceber que embora usando de uma liberdade bastante grande, uma liberdade considerável, naquela sessão nunca deixei de ter os meus pais cem porcento comigo mesmo quando desatinava, dizia asneiras. Eles nunca tiveram esgares, reações de receio, de vergonha, nunca. E isso é altamente libertador. Quando percebes que o teu passado está de bem com o teu presente, então podes levá-lo para o teu futuro.
“Se há coisa que quero é experimentar a vida da forma mais profunda que me for possível”
A tua mãe disse na apresentação do livro que todas as histórias escritas nele são “homenagens às pessoas que fazem parte do micromundo dele”. E basta lê-lo para perceber isso. Concordas?
Sim, às vezes são estados de espírito que levam a uma história, a uma reflexão, a uma javardice. Basicamente são necessidades minhas de alguma maneira, são coisas que vou sentindo e que se transformam em textos precisamente para perceber melhor aquilo que estou a sentir. É quase um efeito de espelho. A partir do momento em que consigo de uma forma cada vez mais direta, cada vez menos intermediada, cada vez, acredito eu, mais honesta, transmitir para o papel aquilo que sinto, mais instrumentos tenho para conhecer os meus sentimentos. E é isso que me importa fundamentalmente. Se há coisa que quero é experimentar a vida da forma mais profunda que me for possível. E às vezes quando fazemos isso vem-nos uma culpa, um peso de consciência, por no exercício dessa autonomia vivencial, podermos estar a ferir alguém à nossa volta, a ser egoístas, etc. A escrita permite-me refletir sobre isso e desatar alguns desses nós porque através dela fui percebendo melhor esta ideia do que é a vida, esta ideia de que de facto somos turistas da vida e temos de conhecer as coisas que a vida tem para nos dar.
“Um dos grandes trabalhos que temos pela frente é derrubar barreiras dentro de nós”
“A vida é aquilo que estivermos dispostos a receber”, também escreveste no teu livro. Até agora estiveste disposto a receber tudo?
Sim, é exatamente isso. Acho que um dos grandes trabalhos que temos pela frente é derrubar barreiras dentro de nós. O que vejo é que anda muita gente muito preocupada em mudar mentalidades, o que acho que é absurdo porque se quebrares barreiras dentro de ti estás a mudar mentalidades sem o quereres fazer porque a tua forma de te relacionares com o mundo vai ser completamente diferente, muito mais aberta, vais aceitar no teu espaço de relações muito mais gente. E essa gente naturalmente como vai ter de ti essa aceitação, essa generosidade, essa abertura, vai descobrir coisas positivas em si relativamente a ti e mudar. Nós nunca mudamos quando alguém nos diz para mudar. Nunca. Nós mudamos quando nos faz sentido essa mudança. E a vida é toda ela mudança. Portanto, ao quebrares barreiras o que é que estás a fazer? Estás a ter uma relação mais direta com o que te rodeia. E se a mudança é a essência de tudo, ao quebrares barreiras, estás a fundir-te nessa mudança. Já não és tu que queres mudar, já é a mudança que opera sobre ti. Acho que esta humildade é muito importante.
O que disseste resume-se numa outra frase da tua autoria: “Custa-me encarar a vida como um mero download da morte”.
É isso. Faz-me lembrar o ZX Spectrum, um computador da minha juventude, em que a gente fazia load, aspas, aspas, enter e ficava aquilo…pronto entrou o jogo. A vida não é isso até porque a morte tu não sabes o que é. A vida é o espaço que tu tens. Há que vivê-la intensamente, não é? Então se há que vivê-la intensamente é absurdo estarmo-nos a proteger dela e não viver.
Uma das coisas que gostas muito de fazer e fazes bem é brincar com as palavras e as asneiras são um condimento que não dispensas na hora da escrita. És mesmo assim, direto, sem filtros?
Sim. Repara. Acho que toda a gente é interessante, todas as pessoas são um mundo, uma viagem. E nós mais uma vez definimos à partida com base nos preconceitos que temos as pessoas que encaixam na nossa viagem. A verdade é que se tiveres outra perspetiva, a de ir à procura do lado bom de cada pessoa, tu vais com alguma minúcia, alguma acuidade sensorial perceber onde é que está o “fiozinho” que podes puxar e a partir do qual começa a vir a pessoa que tu vais descobrir que é fixe. E aí constatas que também para ti a vida se torna muito mais florida. Porque não vais só ter amores perfeitos. Tu vais ter todas as flores que um jardim pode ter, que estariam fechadas e tu fizeste desabrochar para ti. E com as palavras é exatamente a mesma coisa. Por que é que a gente há-de estar a estigmatizar as asneiras? Por que é que vamos reservar as asneiras a um cantinho escuro? Elas precisam de sol para abrir. Então vamos pô-las cá fora porque elas são fixes. Vamos é usá-las de acordo com a nossa forma de ser e sentir.
“Sou uma criança a brincar com as palavras, a vida é uma brincadeira grande e isto não impede que sejas responsável”
“Não precisamos de nos tornar estruturas, matrizes rígidas, podemos todos brincar porque é o que mais gostamos de fazer na vida”, disseste na apresentação do teu livro. Nunca vais deixar de brincar?
Claro. Eu sou uma criança. A escrita é o meu lego não é o meu ego, entendes? Eu sou uma criança a brincar com as palavras, a vida é uma brincadeira grande e isto não impede que sejas responsável. Da mesma maneira que a uma criança também é pedido, determinadas responsabilidades, ela assume-as, cumpre umas e falha outras, da mesma maneira que eu. Se calhar com graus de exigência diferentes que têm a ver com aquilo que a vida também te ensina. Mas convém que nunca percamos de vista essa ideia da nossa passagem pelo mundo como uma brincadeira.
“Uma doença da contemporaneidade, ainda não diagnosticada, é o medo da profundidade”
“Nunca em tempo algum nos olhamos tanto e talvez nunca em tempo algum tenhamos estado tão longe de nos ver”. A maioria das pessoas vive numa ilusão?
É isso. A tua felicidade ou infelicidade está suspensa de critérios alheios como o gosto, és linda…e assim sendo, cada dia que nasça não nasce para ti, mas para a avaliação dos outros. Hoje em dia perdemos imenso tempo com selfies, com exibicionismos gratuitos e olhamos muito para nós próprios, a nossa superfície, a nossa imagem. Nós nunca como hoje apontamos tantas câmaras para nós próprios, nunca como hoje nos vimos a tantos espelhos. E aquilo que nós veiculamos, as mais das vezes, acaba por ser essa dimensão superficial que nos é devolvida pelo espelho. E isto tem repercussões lixadas porque tu passas a assumir que as soluções para os problemas da vida estão pouco abaixo da superfície e como destreinas o mergulho a fundo acabas por criar aquilo que do meu ponto de vista é uma doença da contemporaneidade, ainda não diagnosticada, que é o medo da profundidade. As pessoas têm medo da profundidade.
“(O Porto) É o sítio onde me sinto enraizado sem estar preso”
Um dos teus textos mais hilariantes retrata as gentes do Porto, onde dizes que “cada tripeiro de gema é uma torneira de humor para lavar a alma de quem passa”. Trocarias estas gentes, onde estas incluído, e esta cidade?
Nunca. O Porto é a minha cidade. É o sítio onde me sinto enraizado sem estar preso. E esse humor de que falas, das gentes do Porto, teve também ele muita influência naquilo que me fui permitindo ser.
Tens alguma ligação a S. João da Madeira?
Não, tenho muito pouca mesmo. Nasci em S. João da Madeira, mas viemos para o Porto muito pequeninos e fizemos a nossa vida no Porto. Embora tendo família em S. João da Madeira, nunca regressamos regularmente.
Também mencionas num dos textos que quando eras miúdo ias passar o fim de semana à aldeia. Referes-te a Vale de Cambra?
Sim. Em Vale de Cambra temos uma casa que era a dos meus avós, onde vamos também muito poucas vezes, mas onde queremos ir mais até porque estamos a tomar consciência de que os nossos miúdos vão beneficiar muito de trocar a alienação com os tablets pela descoberta da natureza.
“Escrever foi sempre uma coisa dos dias, ainda hoje nasce e morre com eles”. Vai ser sempre assim?
Sempre. Acho que isso é concordante com aquilo que te disse relativamente à minha forma de viver a vida. Cada coisa a seu momento. Portanto, a própria escrita tem o seu momento, aquele texto tem o seu momento. Foi escrito e amanhã não há uma continuação daquele texto. Amanhã é um novo dia, um novo Marcos, uma nova pergunta.
Marcos Cruz
Tem 46 anos, nasceu em S. João da Madeira, mas foi viver quando ainda era muito pequeno para o Porto, e é Copywriter na Casa da Música.
Estudou jornalismo e fez parte da redação de vários jornais como o Diário de Notícias, o Correio da Manhã e o Norte Desportivo. Acabaria por deixar o jornalismo ao fim de duas décadas de profissão. Mas não deixou de escrever. Muitos dos seus textos sobre tudo e nada estão compilados neste seu primeiro livro.
O labor esteve presente na apresentação do livro “Os pés pelas mãos”, publicado pela Coolbooks, em dezembro passado, na Biblioteca Almeida Garrett. Ao lado de Marcos Cruz estiveram os seus pais Manuela Coelho e Adão Cruz. O médico cardiologista, poeta e pintor, continua a vir uma vez por semana ao seu consultório a S. João da Madeira. A imagem da capa do livro foi alterada pelo irmão Manuel Cruz (ex-vocalista dos Ornato Violeta) a partir de um original da NASA.
O testemunho de José Saramago
O pai, Adão Cruz, recorreu a um testemunho dado por José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, quatro anos antes de morrer sobre a escrita de Marcos Cruz, durante a apresentação do livro “Os Pés Pelas Mãos” na Biblioteca Almeida Garrett.
Ele escreveu: “Caro Marcos Cruz, estou a ponto de partir para a República Dominicana, depois Colômbia, Guatemala, México, e sem tempo, portanto, para a entrevista que me pediu” sobre a escolha do realizador do filme “Ensaio sobre a cegueira” com base na sua obra. “(…) Não termino sem lhe agradecer a notícia que escreveu sobre este assunto. Não é corrente encontrar nos jornais uma prosa noticiosa tão inteligente e sensível. Cordialmente, José Saramago”, leu Adão Cruz.