“…como um dia de primavera nos olhos de um prisioneiro” vai estar patente ao público na Biblioteca Municipal de 8 de março a 20 de abril

 Na exposição de pintura e poesia da autoria de Adão Cruz que é inaugurada esta sexta-feira, pelas 18h00, no âmbito do festival Poesia à Mesa, a palavra de ordem é “sentimento”.

Sem o “sentimento poético” e o “sentimento artístico”, que “são irmãos gémeos” ou até “trigémeos” “se os irmanarmos com a sua própria essência, o sentimento da beleza”, “dificilmente uma obra será uma obra de arte”, o que não é o caso dos cerca de 25 quadros que compõem “…como um dia de primavera nos olhos de um prisioneiro”. Estes são repletos de sentimento(s) e, assim sendo, estamos perante verdadeiras obras de arte, que podem ser “sentidas” na Biblioteca Municipal (BM) Dr. Renato Araújo entre os dias 8 março e 20 de abril. A entrada é gratuita.

Não obstante ter o mesmo título de uma outra que o cardiologista natural de Vale de Cambra inaugurou em Espinho em finais de junho do ano passado, conforme o labor noticiou oportuna e amplamente, esta mostra “apenas mantém alguns quadros da que foi apresentada” na Galeria Zeller. “Todos os outros são mais antigos ou pintados depois dessa exposição”, conforme adiantou ao nosso jornalo médico, segundo o qual a iniciativa de expor, uma vez mais, em S. João da Madeira (SJM) “partiu da Biblioteca Municipal, através de um convite da Dr.ª Graça Neves”.

Até hoje Adão Cruz já expôs na “Cidade do Labor” “talvez umas três ou quatro vezes, tendo sido a primeira há muitos anos, juntamente com o meu filho mais novo”.

Pinturas classificadas “como uma espécie de expressionismo ficcionista do sentimento”

Quanto ao número de obras que o artista autodidata já pintou, “vão para além, certamente, das três centenas”. E em relação às que “dão vida” à exposição “…como um dia de primavera nos olhos de um prisioneiro”, são – como o próprio explicou ao labor – telas pintadas com técnica mista, preponderantemente a acrílico, de tamanhos variáveis, umas pequenas e outras maiores, não ultrapassando os 120×90 cm.

“São pinturas sem tema definido e sem título, pinturas semi-figurativas ou semi-abstratas” que Adão Cruz classifica, “sem ponta de presunção, como uma espécie de expressionismo ficcionista do sentimento”.

Não é costume o pintor valecambrense “dar um título” às suas obras, porque é de opinião que “a descodificação de uma obra, dita obra de arte, ainda que parcial, pode ser um fenómeno redutor que a empobrece, podendo retirar-lhe uma parte ou mesmo anular a sua própria hermenêutica, isto é, a capacidade que a obra tem de criar as mais diversas interpretações”. No entanto, nesta nova exposição em SJM, como admitiu, “há uma espécie de traição a este meu princípio, dado que, a par do quadro está um poema com título”, “resultado de eu, muitas vezes, pintar um quadro motivado por um poema e outras vezes escrever um poema para um determinado quadro”.

Adão Cruz garantiu ao labor que com “…como um dia de primavera nos olhos de um prisioneiro”, não quer passar qualquer “mensagem especial”. “Sempre pintei e escrevi para mim mesmo sem a mais pequena preocupação de me expor publicamente como artista ou como mensageiro do que quer que seja”, disse, fazendo notar ainda que “quer a pintura, quer a escrita, no meu caso, não são mais do que impulsos naturais ou tentativas de expressão do meu sentir, do que eu chamo sentimento poético e sentimento artístico, sentimentos idênticos a todos os outros sentimentos do ser humano em termos neurobiológicos”.

“Sempre escrevi e pintei para mim”

Além de várias exposições, sobretudo em Portugal e Espanha, Adão Cruz colaborou em programas radiofónicos, algumas revistas e jornais e tem 12 livros publicados, “uns de poemas, outros de contos, outros de pintura com textos e poemas”.

Neste momento, apesar de a vontade de lançar mais um livro ser “pouca”, tem “poemas novos, alguns dos quais fazem parte desta exposição, que dariam para fazer um livro”. Mas, como afirmou, “raramente publiquei livros ou expus a minha pintura por iniciativa própria”, tendo havido “sempre alguém a espicaçar-me para publicar ou a convidar-me para exposições”.

“Sempre escrevi e pintei para mim (…). A escrita e a pintura sempre foram algumas das formas que fui encontrando para tentar expressar o meu mundo, o mundo que ia cá dentro”, contou ao nosso semanário, acrescentando que “sempre gostei muito de escrever e fui escrevendo pela vida fora, desde catraio”.

“Nesta idade os meus braços estão nus”

 “Como é que um médico se torna pintor e escritor?” Adão Cruz começou por referir que a resposta a esta questão do labor “não é fácil”. De qualquer modo, em seu entender, “a arte, ou sentimento artístico, fruto da obediência ao facto de existirmos é a proclamação da inocência contra as culpas do mundo, é a mais segura tábua de salvação nos naufrágios da fraqueza humana e o melhor antídoto contra as sistemáticas tentativas de cretinização da sociedade”.

“[A arte] age sobre a sensibilidade, a imaginação e a inteligência, enriquece o sentido da humanização, ajuda o processo de reflexão, ilumina as emoções e os sentimentos, cria uma poderosa afinidade com a consciência, gera a necessidade de identificação com a verdade e a liberdade, desenvolve o sentido da estética, da beleza, da harmonia e da justiça, e abre a mente do ser humano ao valor da dignidade e à compreensão dos indeléveis mistérios das relações do homem com a natureza, impedindo-o de mastigar crendices, atavismos e superstições absurdas que o escravizam”, reforçou a ideia o cardiologista.

Na sua ótica, a formação na área artística, “podendo ser muito importante, pode não ser absolutamente indispensável”. “Há, inclusivamente, grandes nomes da arte que dizem que o academismo é a doença congénita da arte”, lembrou, assegurando que não é “radical a esse ponto”, mas crê que “anda por aí um fundo de verdade”.

Adão Cruz assume-se, portanto, como “um autodidata, se assim se pode dizer, por não ter frequentado escolas oficiais”. Mas – atenção – “sempre vi muita coisa pelo mundo fora e li muito”. Tenho uma belíssima biblioteca, nomeadamente com os mais variados livros de pintura. Se, por acaso, tivesse tido escola, quer de literatura quer de pintura, de certeza que a ‘minha obra’ não era a mesma, era diferente”.

Hoje, com 81 anos, o médico que também é pintor e escritor pensa que fez “tudo o que queria fazer”: “Fui vivendo a vida na medida em que ela me foi vivendo a mim, contudo, ao fim de uma vida, o futuro vai-se naturalmente dissolvendo, e a desilusão, ou melhor, a perda da ilusão, como subtil nevoeiro vai invadindo todos os recantos onde antes havia sol”.

Questionado pelo labor se não haverá ainda um ou mais “projetos na manga”, respondeu bem ao seu jeito: “Nesta idade os meus braços estão nus”.

“Para mim, a poesianão é o poema”

Sem querer “ferir a sensibilidade de ninguém”, Adão Cruz partilhou com o labor o seu “conceito de poesia” que, como referiu,“pouco tem a ver com o conceito de poesia que para aí se fabrica e se divulga”.

Aonosso jornal, o médico cardiologista disse que aceitou o convite da Biblioteca Municipal Dr. Renato Araújo para participar nesta edição da Poesia à Mesa “por ser uma coisa um tanto à margem [do festival de poesia de S. João da Madeira], muito individual e muito minha”. “Para mim, a poesia não é o poema”, defendeu, concretizando que “o poema, quando muito, é a matriz à volta da qual nós habitualmente procuramos a poesia, tantas vezes sem a encontrar”.

“É uma espécie de copo pelo qual nos habituamos a beber a poesia. Simplesmente, o copo muitas vezes pode estar vazio, não contendo gota de poesia. E isto, porque a poesia, quanto a mim, não é mais do que um sentimento como outro qualquer, em sentido neurobiológico, nascido embrionariamente connosco como todos os sentimentos e desenvolvido através da vida, e a que eu chamo sentimento poético”, prosseguiu o escritor. “Sentimento” que, em seu entender, “pode percorrer transversalmente muitos dos atos da nossa vida, assim como qualquer forma de expressão artística, desde o poema propriamente dito, a um texto em prosa, a uma pintura, a uma peça musical, a uma peça de teatro ou a um bailado, expressões onde a poesia pode viver de forma muito mais profunda do que num poema”.

“A minha maneira de ver a poesia, pela sua natureza intimista, e salvo raras exceções, parece-me pouco compatível com todas estas formas de apresentação pública, lida, dita ou declamada”, rematou Adão Cruz.

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