O testemunho de Maria Helena Oliveira, 67 anos, e Maria Odete Lima, 69 anos, filhas de António Ribeiro de Lima, conhecido como “Pedreirinha”, o único preso político sanjoanense que esteve preso no Forte de Peniche, foi recolhido em exclusivo pelo labor.

Ele nasceu a 17 de março de 1916 em S. João da Madeira. Sempre trabalhou como sapateiro até ser preso a 4 de novembro de 1957 no Porto. Ele foi um dos organizadores da greve dos sapateiros realizada a 5 de agosto de 1943 em S. João da Madeira, à qual aderiram cerca de 2.500 operários e que levou a uma manifestação com mais de 4.000 pessoas a exigirem aumentos salariais, numa alturaem que era muita a fome, a miséria e a repressão. O protesto acabaria com um cerco militar que levou à detenção de 200 pessoas, dais quais só 80 chegariam ao posto e 30 foram presas e enviadas para o Porto, segundo o Jornal “Avante” clandestino publicado na segunda quinzena de setembro de 1943. António Ribeiro de Lima conseguiu fugir ao cerco militar. Desde 1943 até 1957, a identidade de António Ribeiro de Lima deixou de existir e passou a usar muitas outras criadas para que pudesse viver na clandestinidade. E foi com a identidade de Mário de Oliveira que conheceu aquela que viria a ser a mãe das suas duas filhas, no Porto. Ele tinha 27, ela 25 anos e nunca casaram. “Sempre o conhecemos (mãe e filhas) como Mário de Oliveira até ser preso”, contou Maria Odete ao labor.

“Ele quando mudava de casa nunca levava logo a minha mãe. Nós passámos por muitos sítios. Lembro-me de Ermesinde, da Carvalha, quando ele foi preso morava na Carvalha, mas também tenho uma vaga ideia de uma casa em Valbom. Andámos de casa em casa”, recordou Maria Odete, esclarecendo que “ele nunca nos deixou até ter sido preso”. Uma das histórias cravadas na memória de Maria Helena passou-se quando moravam na Rua de Almada, no Porto. “Ele ia comprar solas e cabedais a uma casa certa. Um dia souberam que ele ia lá” porque “há um que vai preso e fala. Ele sabia o nome do meu pai e então nessa altura ele levava o nome de Alfredo. Ele disse que conhecia um Alfredo, do Partido Comunista, que não sabia onde ele morava, mas que se encontrava muitas vezes com ele numa sala de uma casa de solas e cabedais”, contou Maria Helena, continuando: “o meu pai um dia vai às solas e cabedais, mas primeiro vai lá a PIDE e perguntou pelo tal Alfredo que é assim e assim. Se ele cá vier, faça o favor de ligar para este número, mas não diga nada, empate-o aqui até a gente chegar. Eu quero fazer um negócio com ele. A dona da casa achou estranho e disse ao marido. Ele disse para ver o número na lista telefónica e era da PIDE. O meu pai vai lá à loja buscar solas e o dono disse: oh homem não me apareça cá mais que a PIDE veio à sua procura. E à PIDE disse que ele nunca mais apareceu”. Mais tarde, aquando da sua detenção, veio a saber que “a PIDE esteve 10 meses à porta dessa casa”, acrescentou Maria Helena. Quando Mário de Oliveira foi preso a sua família estava em fase de transição para a nova casa em Nogueira da Maia. A mãe tinha ficado na casa anterior com Maria Odete e Mário de Lima mudou-se para a nova casa com Maria Helena. A estratégia era sempre a mesma. Ele mudava-se primeiro e só passado um tempo é que a mulher ia ter consigo. Só que desta vez não voltaram a estar os quatro juntos debaixo do mesmo teto. Ele “só me trazia à minha mãe de vez em quando” e “deixou de aparecer quando suspeitou que a PIDE andava a rondar a casa (antiga)”, recordaram Maria Helena e Maria Odete, respetivamente, ao labor.

Nessa última casa em que ficaram a mulher e uma das filhas, “estiveram lá dois pides à porta para aí cinco a seis dias. Ela ficou a saber que ele andava fugido, viu-se comigo sozinha e meteu-me no Asilo das Raparigas Abandonadas, na Rua Santos Pousada, no Porto, que hoje é o Externato de Nossa Senhora do Livramento” sem o marido saber, contou Maria Odete.

Quando foi preso “tinha ido buscar um embrulho de propaganda”

Mário de Oliveira “tinha ido buscar um embrulho de propaganda a outro” quando foi preso pela Polícia de Segurança Pública à beira da esquadra do Carvalhido, deu a conhecer Maria Odete, relatando: “há um polícia que o vê. Ele segue o meu pai. E diz-lhe: O que é que o senhor leva aí? E ele: papel comum. E o polícia: então venha até à esquadra. E ele: sim, senhor. E vai até quase chegar à esquadra quando lhe manda com os embrulhos às pernas e tenta fugir. Dá de caras com mais dois polícias e o outro grita: agarra, agarra que é comunista. Ele tentou fugir, mas tropeçou neles e o outro que levou com o embrulho rachou-lhe a cabeça. Ele levou-o para a esquadra e todo orgulhoso disse que prendeu um comunista, atirou os papéis, ligou para a PIDE e aí o meu pai soube que dois pides estiveram durante 10 meses junto à loja (de solas e cabedais)”.

Como eles o apanharam na rua não sabiam onde morava nem ele lhes disse. “Ele esteve durante um mês no Porto, onde sofreu a tortura do sono. Eles não lhe bateram, viram que não vergava, eles obrigavam-no a estar de pé e não o deixavam dormir”, contou Maria Odete com base no testemunho transmitido na primeira pessoa pelo seu pai.

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Na última mudança de casa, Mário de Oliveira estava desconfiado quanto ao facto de a sua identidade ter sido descoberta, o que o levou, em primeiro, a deixar de visitar a mulher e a filha que estava com ela e, em segundo, a deixar a filha que estava consigo ao cuidado de uma conhecida até que a mulher recebesse a carta que lhe enviou pouco antes de ser preso. “Ele escreveu um postal à minha mãe. Entregou-me a uma senhora que nos lavava a roupa, pediu-lhe para eu lá ficar uns dias. Ele disse onde eu estava para ela ir-me buscar imediatamente porque estava mal entregue”, relembrou Maria Helena, confessando que “não posso falar muito disto porque lembro-me.…” e as emoções tomaram-lhe por completo as palavras.

Ele voltaria a enviar um segundo postal, assinado como António Ribeiro de Lima, à semelhança do anterior, admitindo assim a sua verdadeira identidade à mulher e às suas filhas. “Ela voltou a receber um postal dele, novamente como António Ribeiro de Lima, para que tomasse conta das meninas e até que fosse com elas para casa da avó (mãe dele). Ela nem sabia que ele era de S. João da Madeira”, assumiu Maria Helena que mais do que qualquer reação que a mãe possa ter tido aquando da descoberta do verdadeiro nome e da vida de clandestinidade vivida pelo marido, recorda uma outra relacionada com uma atitude da PIDE.

“Só ao fim de um mês dele estar preso é que a senhoria chamou a polícia por causa de um senhor que morava ali com uma menina e que nunca mais apareceu e nem sabia o que estava lá dentro. Eles arrombaram a porta e viram que era ali que morava o meu pai. Eles mandaram a minha mãe ir lá buscar a roupa que estava numa mala de cartão, quando a arrombou era cinzas. Eles queimaram tudo. Tinha lá uma bonequita que tinha sido a Georgette Ferreira, camarada, que ma deu. E até ela foi queimada. Ainda vejo a boneca. Quando a minha mãe abriu a mala e viu a roupa queimada, lembro-me de a ver a gritar, ficou louca”, confidenciou Maria Odete, novamente emocionada, ao labor.

“Quando soube que a nossa mãe nos tinha colocado num asilo deixou de falar com ela”

Uma das memórias de Maria Odete é de estar doente dos pulmões e de ter estado presente com a mãe no julgamento do pai no tribunal velho do Porto. “Não me lembro de assistir lá dentro. Mas lembro-me de entrarmos e ter uma escadaria muito larga de pedra, uns bancos muito largos de pedra, estava lá sentada com a minha mãe, vêm os presos todos, 18 para serem julgados, a polícia e o meu pai foi ficando para trás e disse: oh minha filha vais morrer e não vou poder-te salvar”, recordou Maria Odete de forma emocionada, tendo mais tarde o pai admitido que aquela “preocupação era real, mas também veio a confessar que pensou na hipótese de tentar fugir”.

António Ribeiro de Lima esteve preso um mês no Porto, um mês em Aljube e, depois do julgamento, foi condenado a sete anos de prisão no Forte de Peniche. Uma pena demasiado pesada para ele que iria ficar longe da família e para a família que ia ficar incompleta sem o pai. A sua mulher, que era criada em casas particulares, achou que sozinha não ia conseguir dar os bens básicos às filhas e decidiu também levar Maria Helena, depois de ter levado Maria Odete, para o Asilo das Raparigas Abandonadas.

“Ela achou que ali estávamos mais seguras, tínhamos comida, limpeza, tratamento de pessoas doentes, mas o ambiente era de repreensão”, frisou Maria Odete marcada por algumas agruras vividas no asilo.

“O meu pai quando soube que a nossa mãe nos tinha colocado num asilo deixou de falar com ela. Zangou-se com ela. Ela seguiu a vida dela, mas continuou a visitar-nos e nunca nos abandonou”, esclareceu Maria Odete, relembrando que já o pai “só pôde escrever-nos ao fim de algum tempo de estar preso em Peniche. Nunca fomos vê-lo a Peniche. Só no Porto. Teve um mês Porto, outro mês no Aljube e depois veio outra vez para o julgamento no Porto e foi transferido para Peniche. Nunca mais o vi”.

Como a diretora do asilo pensava que António Ribeiro de Lima tinha abandonado de livre e espontânea vontade as suas filhas queria impedir que este estabelecesse contacto com elas. Uma situação que viria a ser resolvida pela pressão exercida por este sanjoanense junto do diretor da cadeia para que tivesse direito a escrever para as filhas porque, tal como ele fez questão de esclarecer nas cartas, endereçadas àquele que considerava ser um Asilo das Raparigas Desamparadas e não Abandonadas: “eu nunca vos abandonei. Vós estais desamparadas e não abandonadas. Ele mandava-nos desenhos, problemas, emendava erros, mandava uma folha para mim e outra para ela para respondermos”, relembrou Maria Helena, salientando que as cartas “vinham todas censuradas” pela Cadeia do Forte de Peniche, pela diretora do asilo e pela professora.

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“Ele pelo Natal mandava caixinhas de biscoitos, rebuçados, mas não eram dele porque não tinha. O meu pai não tinha visitas. O que acontecia é que tudo que ia para Peniche era dividido pelos presos. Ele estava na cela do Álvaro Cunhal. Quando a irmã dele levava, pedia compreensão aos camaradas. Isto vai prás meninas do Lima. Ele sentia muito o sofrimento do meu pai”, confessou Maria Odete, confidenciando que “a pior tortura para ele era quando lhe falavam das filhas. Mas nunca cedeu. Antes quero morrer”, disse-lhes mais tarde. Num dos intermináveis dias enclausurado entre quatro paredes com outros prisioneiros, António Ribeiro de Lima estava “à janela a olhar para o mar e a pensar em nós. E o guarda: saia da janela. Ele: não me chateie. Ele pega num esquentador em esmalte e ameaça-o com aquilo. O Álvaro disse: sei que sofres muito por causa das tuas filhas, mas não ganhas nada com isto”, recordou Maria Odete, constatando que aquele que mais tarde veio a ser o incontornável líder do Partido Comunista lhe tinha falado assim porque “sabia da fuga, mas o meu pai não sabia. Se não, não fazia aquilo. Vieram mais dois guardas e levaram-no para o ´Segredo´. Quando ele  (Álvaro Cunhal) fugiu, o nosso pai estava no ´Segredo´. Ele quando soube da fuga ficou doente”.

“Nunca se arrependeu do que fez. Fazia tudo igual”

A primeira coisa que António Ribeiro de Lima fez quando saiu da prisão foi tratar de tudo que era preciso para tirar Maria Helena do asilo e foi à procura de Maria Odete que estava a viver com a mãe depois de ter tido uns problemas de saúde.

Ele receava que elas lhe virassem as costas por tudo o que sofreram por causa da sua ideologia e das suas ações que o levaram à prisão, mas isso nunca aconteceu porque apesar da distância ele esteve sempre presente. “Muito pelo contrário. Temos muito orgulho nele”, frisou Maria Odete ao labor.

A antiga companheira concordou que ele levasse as duas filhas para viverem com ele na casa dos seus pais em S. João da Madeira. “A casa da nossa avó ainda lá existe na Devesa Velha”, deu a conhecer Maria Odete. Ele voltou a trabalhar nos sapatos. A vida começou a correr-lhe melhor e mudou-se com as filhas para uma outra casa na Rua da Volta que “também ainda lá está”, revelou Maria Odete.

E assim, os três, sempre juntos viveram durante muitos anos. “Ele vinha sempre passear connosco ao sábado à noite, à Colmeia ou à Concha, beber uma meia de leite e comer um pastel”, recordou Maria Helena ao labor.

“Ele até nos queria por a estudar, mas depois pedíamos as roupas e outras coisas porque víamos as outras. Nós estávamos um bocado rebeldes, viu-se consumido para nos educar. A gente queria tudo. Então decidimos ir trabalhar”, recordou Maria Helena. Mas “ele nunca quis o nosso dinheiro”, acrescentou Maria Odete. “Ele teve muita paciência connosco” e “a gente fazia dele pai, amigo, colega. Ele não tinha complexos”, assumiram Maria Odete e Maria Helena, respetivamente.

“Apesar de tudo fomos felizes. Mesmo depois de casarmos não passava uma semana sem nos ver”, completou Maria Helena ao labor.

António Ribeiro de Lima teve namoradas, mas nunca encontrou uma companhia para o resto da vida. É caso para dizer que teve sempre duas companhias até ao fim dos seus dias, as suas duas filhas. Ele faleceu com 80 anos no dia 1 novembro de 1996. Apesar de não ter concordado com a decisão da antiga companheira em colocar as duas filhas no asilo, nunca as proibiu de ver a mãe. “Até obrigava”, assegurou Maria Odete. Ela também nunca casou. E os dois continuaram a conviver.

Em todas as conversas que as filhas tiveram com ele sobre o que fez relacionado com o combate à ditadura, ele “nunca se arrependeu do que fez. Fazia tudo igual”. E por mais que tenha sido difícil um pai ter ficado separado por umas “grades” das filhas devido ao facto de ter ousado pensar,falar e até atuar contra um sistema imposto e não escolhido pelas pessoas, e por mais que essas filhas tenham ficado desamparadas de seu pai, depois de tudo isto ter sido ultrapassado por esse pai e por essas filhas, nada mais importa. “Fomos felizes porque ele…era um homem excecional”, concluiram Maria Helena e Maria Odete ao labor.

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