Setembro é o mês da consciencialização para as necessidades da pessoa com demência
Imagine alguém “entrar” no seu cérebro e levar, sem o seu consentimento, aquilo que tem de mais valioso. Aos poucos, vão-se as memórias de acontecimentos recentes, esquecem-se pessoas ou lugares conhecidos, chama-se “mãe” à filha (ver texto secundário), perde-se o sentido de orientação… A própria vida perde o sentido.
A demência é o termo utilizado para descrever os sintomas de um grupo alargado de doenças, entre as quais a doença de Alzheimer, que causam um declínio progressivo no funcionamento da pessoa. Falamos de “indícios” como a perda de memória, capacidade intelectual, raciocínio e competências sociais, bem como alterações das reações emocionais normais.
A um ritmo que difere de pessoa para pessoa, o Mundo começa a “virar-se ao contrário”, sem que quem está doente se aperceba. É “quem está à volta que se vai apercebendo” de “sinais” como a repetição de perguntas ou o desleixo com a higiene pessoal e a casa. E sobretudo, “se isto acontecer num curto espaço de tempo”.
Nessa altura,“entram em cena” os familiares, os amigos, os vizinhos e/ou as instituições de terceira idade. São estes agentes da sociedade que, geralmente, acompanham os pacientes – encaminhados pelos médicos de família – na Consulta de Memória do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga (CHEDV) que funciona no Hospital de S. Sebastião todos os dias da semana.
A Consulta de Memória existe na unidade hospitalar de Santa Maria da Feira, onde está sedeado o CHEDV, há mais de 10 anos e é coordenada por Luís Ruano há três.O objetivo, como explicou o coordenador ao labor, é “cuidar de pessoas com suspeita de deterioração cognitiva e/ou de demência, fazer o diagnóstico, tentar tratar dos casos que são possíveis de tratar e gerir a maioria dos que infelizmente não têm tratamento”, procurando sempre “apoiar os doentes e famílias”. Sim, porque “se o diagnóstico for atempado e se a [devida] medicação for tomada evitam-se situações de rutura familiar” e até de “abandono de idosos”, avisou o neurologista, acrescentando que “nas consultas trabalhamos muito aquilo que deve ser a atitude do cuidador na gestão da doença e procuramos apoiá-lo e ensinar-lhe a gerir tudo isso com o doente”.
“Para a maior parte das demências não há cura”
“Quandovêm sozinhos e a conduzir a gente percebe logo que não há uma demência”, disse ao nosso jornal o médico do CHEDV, esclarecendo que “aparecem aqui pessoas com 40, 50 anos que estão preocupadas com a sua memória, mas que, às vezes, apenas têm um problema de sono ou de ansiedade”. Quando assim é, Luís Ruano e os colegas da Consulta de Memória orientam-nas para a respetiva especialidade médica.
“Há outras – prosseguiu o profissional de saúde – que vêm num estado muito inicial. São pessoas até bastante autónomas que ainda conduzem, que vão ao banco, mas que, por exemplo, este ano não foram capazes de fazer o IRS, começaram a esquecer-se de datas importantes e a repetir perguntas”.
Mas infelizmente são mais aqueles que chegam “já acamados, numa situação já muito avançada”. Este é, segundo Luís Ruano, “o desfecho mais comum da maior parte dos quadros: a pessoa ficar totalmente dependente”. E nesses casos “o nosso papel é essencialmente atrasar o mais possível esse estado e dar a maior qualidade de vida possível às pessoas nesse processo”.
Ou seja, “há algumas situações em que é possível uma cura ou, pelo menos, um tratamento que modifica bastante a história da doença”, como, por exemplo, “situações que resultam de uma infeção (por HIV, sífilis, défice vitamínico, etc.) ou “algumas doenças cerebrais que são parcialmente reversíveis”. No entanto, o neurologista chamou à atenção para que “para a maior parte das demências não há cura”.
Cerca de 700 primeiras “consultas de memória” por ano
A equipa da Consulta de Memória é constituída por seis médicos (cinco neurologistas e uma interna de neurologia) e uma neuropsicóloga, contando ainda “com o apoio próximo do serviço social”. Neste momento, “estamos a tentar arranjar também uma enfermeira para nos ajudar nos ensinos de cuidados aos familiares e cuidadores”, adiantou Luís Ruano.
Por ano, a Consulta de Memória contabiliza cerca de 700 primeiras consultas e 1.200 subsequentes. De acordo com o seu coordenador, “desde que é feito o pedido até observarmos o doente não é muito grande o tempo de espera. É uma questão de dois, três meses, na maior parte dos casos”.
Os doentes são oriundos dos concelhos de S. João da Madeira, Santa Maria da Feira, Ovar, Vale de Cambra, Arouca e Oliveira de Azeméis, sendo que a grande maioria tem mais de 65 anos de idade. São mais mulheres do que homens. Não porque “as mulheres tenham um maior risco de vir a ter uma demência”, mas porque “a nossa demografia numa idade mais avançada é composta maioritariamente por mulheres”, deixou claro o médico.
Ainda a propósito da idade dos doentes, “à medida” que esta “vai avançando, a prevalência aumenta. Ou seja, a percentagem de pessoas que são afetadas em cada faixa etária é crescente, pelo menos, até aos 90 anos”.
Luís Ruano informou que “a maior parte dos casos concentra-se nos 70, 80 e nos 90 anos também”. Em pacientes com 40, 50 anos ou pouco mais do que isso, “os casos [de demência] são muito raros, excecionalmente raros até”.
Grande parte das pessoas nessas idades tem “é falta de concentração e de atenção”, sendo que, “normalmente, as causas mais comuns são a fadiga, falta de sono, ansiedade, stress”, entre outras.
“Demência vascular afeta mais os portugueses do que a doença de Alzheimer”
Não é possível ainda saber com certeza quantas são as pessoas com demência a viverem em Portugal, mas “o número será na ordem dos 150.000”, avançou Luís Ruano à nossa reportagem, acrescentando que, “nos dois estudos de base populacional em que foram avaliadas com detalhe as causas de demência na população, as duas mais comuns foram demência vascular, seguida de doença de Alzheimer”.
Também ainda não se sabe, “com exatidão, o número de casos na região do Entre Douro e Vouga (EDV), mas um estudo realizado em 2003 encontrou uma prevalência de 1.6% de demência em 3.9% de défice cognitivo em S. João da Madeira e de 3.4% de demência e 4.3% de défice cognitivo na população de Arouca”, completou o médico.
A doença de Alzheimer é a forma mais conhecida de demência, mas existem mais de 100 tipos de demência, como a demência vascular, a demência de corpos de Lewy ou a demência frontotemporal. “Na população, temos todos estes tipos de casos”, assegurou Luís Ruano. Aliás, todos eles são “relativamente frequentes”. Então, “por que praticamente só se ouve falar de doença de Alzheimer?”, questionou o nosso semanário.
O coordenador da Consulta de Memória alertou para que a “investigação científica nesta área é muito difícil”. “Contrariamente a outros órgãos (fígado, por exemplo), não podemos fazer biópsias ao cérebro quando a pessoa está viva” e, assim sendo, “quando os exames apontam no sentido de que o indivíduo tem uma demência não se pode ter a confirmação absoluta de qual é o tipo de demência”.
Por estas e por outras razões, “historicamente, houve uma altura [anos 30, 40] em que se achava que todos os doentes tinham demência vascular. Depois, nos anos 80 e inícios dos anos 90 começou-se a achar que tinham Alzheimer. Hoje o consenso é que há muitos tipos de demência e que, dependendo de país para país ou até mesmo região, umas são mais frequentes do que outras como outra doença qualquer”, explicou.
Em Portugal, “existem estudo epidemiológicos sobre o assunto, um dos quais feito em S. João da Madeira e Arouca “há mais de 10 anos por pessoas ligadas aqui ao hospital [“S. Sebastião”], que identificou que na nossa região provavelmente a demência vascular seria mais ou menos tão frequente como a doença de Alzheimer”. Já no ano passado “publicámos um estudo [de investigadores do Instituto de Saúde Pública, entre os quais Luís Ruano] da Universidade do Portosobre a população do Porto com o qual chegámos à conclusão que a principal causa de demência em Portugal está relacionada com fatores vasculares e não com a doença de Alzheimer [esta investigação contou com o apoio do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga e da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto]”, contrariamente ao que se sucede na maioria dos países ocidentais da Europa. Além disso, “há um estudo na zona Sul do país em que não estão caracterizadas as diferentes causas de demência, mas no qual a demência vascular é importante”.
Para Luís Ruano, “isto não é assim tão estranho se pensarmos que o AVC [Acidente Vascular Cerebral] é a principal causa de morte no nosso país e que temos das mais altas taxas de incidência de AVC da Europa”.
Conselhos para reduzir o risco de desenvolver demência
“Existem algumas formas hereditárias de demência, que passam de geração em geração, mas são muito raras e são tipicamente demências que começam antes dos 60 anos”. Ou seja, “o facto de se ter familiares que tenham tido uma demência que começou depois dos 70 anos não aumenta particularmente o risco de vir a ter uma demência”, clarificou o neurologista.
“O fator genético tem [pois] muito pouco peso”, começando-se, hoje em dia, “a ter uma ideia daquilo que pode ser feito” para reduzir o risco de desenvolver demência. Entre várias dicas, Luís Ruano recomendou a prática de exercício físico regular – atenção que não é preciso ser-se atleta de competição! -, uma alimentação tendo por base a dieta mediterrânica, o controlo dos fatores de risco vasculares (diabetes, hipertensão, colesterol, etc.) com a ajuda do médico de família, estimulação cognitiva ao longo da vida.
Também, na sua opinião, é importante “cuidar da saúde mental, ou seja, cuidar dos problemas de ansiedade, stress, depressão”. Estes não podem ser descurados, devendo “ser observados e tratados por profissionais”. E, para além disso, “outro fator que ganhou alguma relevância nos últimos tempos é a perda auditiva”, uma vez quem sofre disto “tem o risco aumentado de demência”.
Centro de Estimulação para Pessoas com Demênciainaugurado dia 30
Na próxima segunda-feira, a Associação de Melhoramentos Pró-Outeiro inaugura, na freguesia de Santiago de Riba-Ul, o seu Centro de Estimulação para Pessoas com Demência (CEPD).
Funcionando de segunda a sexta-feira, das 9h00 às 18h00, o CEPD é mais uma valência desta instituição particular de solidariedade social do concelho de Oliveira de Azeméis, da qual o labor já fez notícia em edição anterior. Dirige-se particularmente – como refere nota informativa remetida recentemente ao nosso jornal- para o tratamento não farmacológico da demência, tendo como objetivo disponibilizar uma resposta ao nível dos cuidados especializados para as pessoas com declínio cognitivo e demência e respetivos cuidadores (in)formais.
O CEPD é constituído por uma equipa técnica [coordenadora (neuropsicóloga clínica) e consultora científica (neuropsicóloga clínica e investigadora)], uma equipa técnica operacional (terapeuta ocupacional, psicóloga clínica e neuropsicóloga) e por uma equipa não técnica (composta por auxiliares de Geriatria). Conta ainda com um animador sociocultural, uma médica com a especialidade de Medicina Geral e Familiar e uma enfermeira que pertencem aos recursos técnicos da instituição.
“I Congresso Envelhecimento e Práticas na Demência”
Também a 30 de setembro e a 1 de outubro tem lugar no Vale do Rio Hotel Rural, em Palmaz, o “I Congresso Envelhecimento e Práticas na Demência” organizado precisamente pela equipa do CEPD. Neste evento participam diversos palestrantes “com um percurso científico e clínico sólido na temática sobre a qual exporão evidências atuais e com implicações para a prática clínica junto das pessoas com demência”. Entre estes, a organização destaca António Leuschner – professor catedrático convidado no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto (ICBAS), onde leciona no departamento das Ciências do Comportamento e é regente da Unidade Curricular de Psiquiatria. Atualmente é presidente do conselho de administração do Hospital Magalhães de Lemos, no Porto, e presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental desde 2010.
Já o encerramento dos trabalhos vai estar a cargo do professor emérito Gerardo Prieto Adánez da Universidade de Salamanca (Espanha), onde exerceu funções como catedrático de “Metodología de las Ciencias del Comportamiento” desde 1987 até 2018.
“Ela diz que sou a ‘mãe’ dela”
No passado sábado, 21 de setembro, assinalou-se mais um Dia Mundial da Pessoa com doença de Alzheimer
“Joana” (nome fictício), de 50 e poucos anos de idade, é apenas uma das muitas filhas que, de repente, passaram a ser “mães” das próprias mães. “Ela [agora] diz que sou a ‘mãe’ dela”, contou ao labor, referindo-se a “Maria” (nome também fictício) que há coisa de cinco anos, quando o marido faleceu, começou a apresentar sinais de que algo não estava bem.
Na altura, “com 68, 69 anos, passou a ter dificuldade em articular frases. Havia palavras que faltavam. Nós entendíamos porque a conhecíamos muito bem e percebíamos o que ela queria dizer”, mas as outras pessoas não.
Hoje, com 75 anos, esta doente com doença de Alzheimer vive no Lar de Idosos S. Manuel da Santa Casa da Misericórdia (SCM) de S. João da Madeira (SJM), aquele que, no entender de “Joana”, “é o melhorsítio neste momento”. “Para bem dela e para o resto da família”. Mas até chegar a SJM e à SCM o “caminho” foi longo e difícil.
Embora natural da zona de Aveiro, “Maria” residia numa “vila pacata” perto de Lisboa, onde “Joana” também viveu até vir para S. João da Madeira há mais de 20 anos. A vida de “Maria” foi normal, como tantas outras, até ao dia em que, primeiro, uma outra filha e, depois, o marido, faleceram vítimas de doença. Ela foi como que um “pilar”, acompanhou-os até ao último momento. “E de repente ficou ali um vazio!”.
“Joana” quer crer que os falecimentos da irmã e do pai “fizeram um clique”. Em seu entender, terão sido estes dois acontecimentos que fizeram espoletar a doença.
Na altura, “fui com ela a uma neurologista ao Porto”. Posteriormente, fez exames médicos específicos que levaram à conclusão que “provavelmente seria Alzheimer”. Já aí “queria que ela viesse para S. João da Madeira, mas ela não queria”. “Maria” continuava a viver em sua casa, com o neto mais velho, filho de “Joana”, que, entretanto, “foi lá para baixo trabalhar”. Era este neto que a acompanhava às consultas da especialidade no hospital local.
A doença de Alzheimer começou a manifestar-se mais “há uns dois anos”, quando, por exemplo, “ela ia ao banco levantar 300 euros e dizia que tinha levantado três”. Houve também uma situação em “o neto deu conta em que ela resolveu aquecer água numa caneca de plástico”. A própria “Joana”, numa das vezes em que visitou a mãe, reparou que faltavam coisas em casa como roupas, pratos e o trem de cozinha.
Foi no início do ano passado que, após um episódio de demência ocorrido na rua e que levou “Maria” a ser assistida no hospital, que “Joana” disse “basta”. “Caiu-me a ficha naquele dia. Imaginei que ela a qualquer altura podia entrar num autocarro e desaparecer completamente”, confidenciou à nossa reportagem.
“Maria” veio para S. João da Madeira “enganada”
Foi o neto que, por indicação de “Joana”, trouxe a avó para S. João da Madeira. “Maria” achou estranha a viagem ao Norte, mas, mesmo contrariada, lá acabou por vir.
Começou por ficar na casa da filha e frequentar o centro de dia da SCM durante o dia. No início, “não foi fácil, porque estava habituada a sair a toda a hora”. Mas depois lá se foi adaptando.
Frequentou o centro de dia meio ano, tendo passado, entretanto, para o lar de idosos, onde já está há um ano. “Joana” garantiu ao nosso jornal que “nunca pensei que fosse para o lar”. Mas a verdade é que “começámos a ter situações em casa muito complicadas: queria sair porta fora, queria dar banho aos netos, já adolescentes, queria tomar banho sozinha e depois lavar a roupa na banheira e estendê-la nos móveis”.
“O lar foi a solução” encontrada a partir do momento em que “percebi que não conseguia lidar com a situação”. “O ambiente em casa era terrível. Eu tinha um ‘bebé’ em casa”, assumiu.
A doença está a evoluir a passos largos ao ponto de “ela já não me reconhecer”. Já “não sabe o meu nome”. A sua memória de curto prazo foi-se. “Maria” é como “uma cidade em que as luzes têm vindo a pagar-se aos poucos”.
“Há muita gente à nossa volta a dar palpites”, mas, para “Joana”, “as flores dão-se agora”. E, por isso, a sua obrigação é “cuidar dela, fazer o meu melhor àquela pessoa que sempre cuidou de nós, deu apoio a toda a gente e que merece ser cuidada e ser mimada”.
“Joana” admitiu ao labor ter sido “difícil” “o entendimento entre a minha razão e o meu coração. A razão compreendia tudo, mas o meu coração não entendia que aquela pessoa me dissesse coisas que nunca me tinha dito”.
Aliás, na sua opinião, “dentro de nós tem de haver uma mudança que acompanhe o que vai sucedendo. A própria forma como olhamos o mundo tem de mudar”. Mudança que, no seu caso, está a acontecer, aos poucos e poucos…