Sábado passado foi dia de mais uma conferência Pensar Futuro. Neste seu regresso a S. João da Madeira, o Padre Anselmo Borges falou de uma sociedade de valores invertidos
Para uma conferência “especial” impunha-se, digamos assim, um conferencista também “especial”. “Especial” não só pelo seu vasto e rico currículo, mas também pela ligação ao Município e, em particular, ao seu atual presidente.
De regresso a S. João da Madeira (SJM), volvido cerca de um ano e meio desde a última vez que esteve na cidade, o Padre Anselmo Borges iniciou a sua intervenção dirigindo-se precisamente a Jorge Sequeira. A este seu “amigo de longa data” não poupou elogios, assim como ao Ciclo de Conferências Pensar Futuro, promovido pela câmara. Até porque, como disse, “o futuro só existirá com a cultura” e com iniciativas como aquela em que estava a participar. Também no início, o padre da Sociedade Missionária Portuguesa ainda enalteceu um outro amigo sanjoanense, Pedro Silva, diretor do labor, semanário que o entrevistou em 2018 e cuja entrevista consta do seu mais recente livro “Conversas com Anselmo Borges – a Vida, as Religiões, Deus” (editora Gradiva), juntamente com outras que deu de 2007 a 2019 a jornais, à rádio e às televisões. E por falar em livro, Anselmo Borges trouxe consigo exemplares para venda e foi embora sem nenhum, tamanha foi a procura. Quem comprou ainda teve direito a autógrafo no final da sessão.
“Ainda há valores”, mas…
Mesmo com chuva e frio, foram aproximadamente 150 as pessoas que marcaram presença no auditório dos Paços da Cultura. E a estas o professor universitário fez questão de explicar “toda a problemática à volta dos valores e o que está em questão quando falamos hoje dos valores”.
Anselmo Borges escolheu o tema “Já não há valores”, para abordar também em SJM à semelhança do que já fez em outras partes do país, por julgar “um tema essencial em si mesmo e porque ouço constantemente as pessoas a dizer, desiludidas e quase desanimadas, quando olham para o que está a acontecer à sua volta e no mundo: ‘já não há valores’”.

No passado sábado, quis mostrar “essencialmente duas coisas: que sim, que continua a haver valores, mas que o problema fundamental da nossa sociedade e do nosso tempo é que se deu uma inversão na escala, na pirâmide ou hierarquia dos valores”.“Vivemos [pois] numa sociedade onde os valores estão invertidos”, chamou à atenção dos presentes.
Conceitos como “neotenia”, “também aplicado ao ser humano”, foram trazidos a público pelo teólogo, para fazer ver que “entregue a si mesmo o ser humano não sobrevive”. Em seu entender, “temos de fazer-nos recebendo cultura e produzindo cultura”. “Fazer-se a si mesmo é tarefa fundamental”, reforçou a ideia, acrescentando que “para nos fazermos temos de realizar valores”.
Anselmo Borges também recordou a origem da palavra “valor”: “Vem do latim: “vale!”, que era a saudação romana, a desejar saúde, como nós dizemos, quando nos despedimos de alguém: fica bem, passa bem!”. “Logo por aqui – prosseguiu – quando se atende à etimologia da palavra, se vê que há uma multiplicidade de valores, porque a saúde só existe quando estamos bem nas múltiplas dimensões do humano: no plano físico, no plano psíquico, na relação com os outros, com a natureza, com o Divino…”. E, além disso, apresentou a hierarquia dos valores, começando pelos mais urgentes: valores vitais, o valor da saúde, a segurança, o reconhecimento, os valores espirituais (valores intelectuais, valores estéticos, valores morais e éticos), os valores da pessoa, os valores religiosos, entre outros. E destes destacou o valor da pessoa como “o valor mais alto”, “valor supremo”. “A pessoa é fim em si mesmo e, por isso, não tem preço”, considerou.
Hoje “já não há tempo para pensar e não se colocam as grandes perguntas”
Ainda a propósito da inversão de valores a que se assiste hoje, o filósofo oriundo de Paus (concelho de Resende) afirmou que tal acontece “porque tudo, incluindo a política, se tornou negócio”. Segundo explicou, “a nossa palavra escola vem do grego ‘scholê’, que significa ócio, não no sentido de preguiça, mas de tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem. Hoje, tudo se tendo transformadoem negócio (do latim nec/otium: negação do ócio), já não há tempo para pensar e não se colocam as grandes perguntas. O filósofo Martin Heidegger tinha advertido: a técnica (e o negócio também é uma técnica) não pensa, apenas calcula. Assim, a situação é o que se sabe e se vê”.
Em SJM, também alertou para o facto de atualmente “existir uma série de questões [a ecologia, as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências)] que levam a pôr problemas relacionados com o eugenismo, o transhumanismo e até o pós-humanismo, os mercados globais e a financeirização desregulada da economia, o trabalho, as migrações, as drogas, etc.”. Questões que, na sua ótica, “são globais e só no quadro de uma ‘Global Governance’(não digo governo mundial) podem encontrar solução. Mas, num mundo pela primeira vez verdadeiramente global, continuamos a ter políticas nacionais, quando muito, regionais”.
“Ambiente” é o tema da edição do Pensar Futuro deste ano
O ciclo de conferências Pensar Futuro iniciou-se em abril de 2018, tendo trazido a S. João da Madeira um conjunto de pensadores, de diferentes áreas do conhecimento e de diferentes latitudes culturais, para refletir sobre o futuro e os grandes movimentos de mudança e transformação na sociedade atual. Para além do Padre Anselmo Borges, já participaram nesta iniciativa nomes como Teresa Tito de Morais, Presidente do Conselho Português para os Refugiados, Carlos Magno, jornalista e ex-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), o sociólogo João Teixeira Lopes, o médico e investigador Manuel Sobrinho Simões, a eurodeputada e ex-ministra Maria Manuel Leitão Marques, o ambientalista Viriato Soromenho Marques e o cientista Carlos Fiolhais.
Este ano, volta a haver Pensar Futuro, tendo, nesta sua terceira edição, o “ambiente” como tema central e os ambientalistas José Sá Fernandes, Júlia Seixas e Paulo Magalhães como conferencistas convidados.