Vivem-se tempos nunca antes vividos, em que todo o cuidado é pouco. Tempos de isolamento social em que a sala de estar de casa é, agora, uma sala de aula improvisada, a partir da qual os alunos continuam a aprender, mas à distância de um clique. Já passaram mais de 15 dias desde que o Governo decidiu encerrar os estabelecimentos de ensino como medida de contenção contra a propagação da Covid-19. Decisão que, no caso de muitas famílias, levou a uma mudança de vida de 180 graus.
Desde o passado dia 9 de março que, logo pela manhã, deixou de haver a correria, misturada com alguns berros para fazer “saltar da cama” quem só queria dormir mais “cinco minutinhos”. A mãe, o pai ou até mesmo os dois também estão em casa. Os horários já não serão tão rígidos… Mas atenção que “ninguém está de férias”, como chamou à atenção recentemente o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues. Aliás, nem os próprios pais estão, porque muitos estão em teletrabalho.
Crianças, adolescentes e jovens têm atividades letivas e não letivas não presenciais, sob o olhar atento do(s) progenitor(es), na medida do possível, como é óbvio, e com os professores do outro lado do visor do computador ou do tablet a monitorizarem os trabalhos que vão sendo feitos diariamente.
Toda esta crise pandémica, que ninguém sabe ao certo quanto tempo vai durar, tem sido um verdadeiro teste à saúde mental, mas também à união das pessoas. E a verdade é que em tempos em que os beijinhos e os abraços estão “proibidos” se assiste a uma (re) aproximação das famílias. Os testemunhos que o labor dá a conhecer na edição desta semana são a prova disso mesmo, que há vida e bom ambiente familiar para além da Covid-19.
“Éramos uma família que dificilmente parava em casa”
Luciana Mozzini é instrutora de pilates, mas também mãe de dois filhos: Matheus Mozzini Sinoti, de 11 anos, e André, de oito. Os três estão isolados em casa desde o passado dia 12 de março. Mas não estão sozinhos. Na mesma situação encontram-se, também, o chefe de família, Luis Sinoti, de 47 anos, e a sua mãe Neuza do Rego Barros.
“Estão todos no mesmo barco” – entenda-se em isolamento social. E assim vão permanecer até toda esta situação de crise passar. Fazem-no a pensar na sua saúde, sobretudo na de Neuza que já tem 81 anos e faz parte do grupo de risco dos que não devem sair de casa. “Não temos saído de casa, porque acreditamos na importância de cada um fazer a sua parte e de se manter em casa para, juntos, conseguirmos parar a propagação da Covid-19”, contou Luciana ao labor, garantindo que só sairão “se for necessário comprar mantimentos”.
Não há mesmo dúvida que, com a ameaça do novo coronavírus, a vida desta família de brasileiros radicada em S. João da Madeira mudou a olhos vistos. Antes, “éramos uma família que dificilmente parava em casa. Era muita correria: saíamos todos de casa às 8h20, o Luis [consultor imobiliário] e os meninos [o mais velho aluno do 5º ano na Escola Básica e Secundária Oliveira Júnior e o outro aluno do 2º ano na Escola dos Ribeiros] regressavam por volta das 19h30 e eu só por volta de 21h00. Já a minha sogra [reformada] ficava praticamente o dia todo sozinha”, descreveu a jovem de 32 anos
Agora não. O ritmo abrandou – e de que maneira! Tanto que “a minha casa nunca esteve tão limpa e organizada [risos]”, disse Luciana que, tal como o marido, está a trabalhar a partir de casa. “Parar faz-nos ter mais tempo para estar, de facto, com os nossos, valorizar o nosso cantinho e as nossas atividades, acompanhar melhor o que os meninos estão a estudar, ter mais tempo e paciência para responder às dúvidas, fazer uma coisa de cada vez, todas as refeições em família e conversarmos mais”, relatou, falando ainda que os filhos estão a adaptar-se muito bem a esta nova rotina, inclusive ao ensino a distância.
“Lembramos sempre que não estamos de férias”
Em relação ao Matheus, “os professores criaram salas de aula virtuais e enviam diariamente desafios, questões e até testes. Como ele é do ensino articulado, os professores da Academia de Música de S. João da Madeira também estão em contacto direto com ele, ligam para explicar os exercícios, enviam vídeos e ele também envia o que está a fazer e também as dúvidas”. Já André “estuda através da plataforma Leya, onde tem os manuais escolares”. Segundo Luciana, “está tudo a correr muito bem: organizamos uma rotina com os horários o mais parecido possível da escola, com intervalos e atividades extras para que eles continuem ativos e nós possamos trabalhar também. Temos horário de acordar e deitar, tudo como antes. E lembramos sempre que não estamos de férias”.
Claro que os filhos “sentem falta dos amigos, das escolas e dos treinos desportivos, mas até não têm reclamado disso”. Para Luciana, “a tecnologia acaba por ajuda muito, pois ficam em contacto com os colegas o dia todo via WhatsApp”. Além disso, na sua opinião, “quando há regras e rotina tudo se torna mais fácil e leve”.
Quanto a si própria, o não estar a trabalhar é realmente um aspeto menos positivo. Apesar de dar aulas online, Luciana admitiu sentir “falta dos alunos e colegas de trabalho” e também o facto de deixarem “de ganhar uma parte importante dos nossos rendimentos” é uma desvantagem, assim como “o não poder ir aonde quiser à hora que quiser”.
Mas, em geral, “o parar e estar mais em família de verdade era algo que precisávamos mesmo”, referiu, mencionando ainda que se tem apercebido que até “a minha sogra está mais ativa desde que estamos em isolamento”. “Antes passava o dia todo deitada a ver novelas e agora tem estado mais no resto da casa, joga com os meninos, conversa, caminha e fica mais tempo acordada. Está realmente a conviver com a família”, afirmou Luciana, para quem é “lamentável o mundo estar a viver toda esta situação”.
De qualquer modo, também, acredita que “tudo tem uma razão para acontecer e que isto está a fazer-nos estar mais juntos dos nossos, mais presentes de verdade e mais unidos como sociedade”. Provas disso são várias “iniciativas de grandes empresas de educação, profissionais liberais, como eu, e instituições de cultura que disponibilizaram tantos cursos, aulas, passeios guiados e aulas online e gratuitas”.
Não veem a hora de poder “abraçar a todos”
“Ainda estamos no princípio, mas penso que será colocar o pé na praia como o primeiro homem que pisou a Lua e abraçar a todos”. Liliana Matos Magalhães já pensou na primeira coisa que a sua família vai fazer quando tudo isto passar e partilhou-a com o labor.
Isolada em casa há cerca de 15 dias, esta fisioterapeuta e instrutora de pilates deixou de trabalhar para cuidar dos filhos: Valentina Neto, de quatro anos, e Benjamim, de dois. Para já, só o marido, Ricardo Neto da Silva, consultor na área de gestão de tecnologias da informação, “está em teletrabalho”. Mas a ideia de Liliana é também se organizar de forma a que, também à distância, possa “fazer algo pela comunidade, enquanto promoção do exercício físico acompanhado por videochamada, e consciencialização para as boas práticas de pilates caso a caso, no sentido da prevenção da saúde, da manutenção de hábitos saudáveis e da promoção do pilates como exercício chave para a felicidade”.
Face ao agravamento do surto pandémico no nosso país, Liliana e Ricardo optaram por encerrar o estúdio de pilates de que são proprietários em S. João da Madeira (SJM) e iniciar “o isolamento voluntário mesmo antes de ser decretado o fecho das escolas”. “Achamos consciente e a única alternativa, face ao culminar de toda a situação em Santa Maria da Feira, garantir o menor risco possível tanto para nós e para as nossas crianças, como para os nossos clientes de pilates”. E, “tomada a decisão, mesmo com perdas de retorno financeiro, gerimos as nossas vidas no sentido de eu ficar com os meninos em casa e o papá preparou-se para garantir com os clientes o teletrabalho”.
“Na verdade, já desde o Carnaval que estávamos bastante preocupados com a proximidade industrial de S. João da Madeira às feiras internacionais de Itália e não víamos ninguém muito preocupado com a possibilidade de contágio. Por nossa vontade, uma vez que não havia controlo destas situações, não tínhamos mandado os meninos para as escolas já desde essa altura. Mas sem alternativa, e quase com rótulo de ‘alarmistas’, mantivemos a nossa vida normal!”, admitiu Liliana, cuja família, de um dia para o outro, se viu confinada a quatro paredes.
São mesmo muitas as diferenças entre o “antes Covid-19” e o que vivem presentemente. Antes, “tínhamos uma vida ótima. Apesar de muito corre-corre e trabalho exponencial, as coisas corriam bem! Em termos de divulgação do nosso estúdio e agenda, tínhamos atingido um pico muito favorável e crescente desde o início do ano 2020”, contou ao nosso jornal, acrescentando que, “como qualquer família, a nossa rotina era preparar os meninos, levá-los à escolinha. Eu, alguns dias, trabalhava aqui no estúdio de S. João, outros no Porto, já o papá dividia-se entre Santa Maria da Feira, Viseu e Sever do Vouga. Ao fim de semana, uma a duas vezes por mês, também tínhamos formação do curso de instrutores de pilates, no estúdio de S. João da Madeira. Caso contrário, costumávamos ir visitar a família e passear à beira mar”.
Agora, a vida limita-se ao apartamento onde vivem em SJM. Tirando uma deslocação recente a Sever do Vouga, onde colheram laranjas e tangerinas e desfrutaram um pouco da natureza, Liliana apenas saiu uma vez para ir à mercearia e à farmácia e Ricardo, nos primeiros três dias, ainda se deslocou a clientes. Mas desde então não têm saído para o exterior, a não ser para comprar alguma coisa que seja preciso e despejar o lixo.
Liliana contou ao labor que nos dias de sol é “mais fácil” ocupar as crianças. “Tentamos manter algumas rotinas: de manhã brincam no terraço do apartamento, pulam no trampolim, andam de triciclo; depois do almoço, fazem a ‘sestinha’, lancham, veem alguma TV e vídeos da internet que adoram e nos permite alguma calma para o pai puder trabalhar via Skype. Sempre que se pode realizamos atividades lúdicas como pinturas, desenhos, música e brincadeiras várias. Incentivamos a alguma ajuda na arrumação do pijaminha, do quarto, a pôr a mesa e como mestres de culinária”.
Para além disso, como descreveu esta jovem mãe de 38 anos, Valentina, a sua filha mais velha que frequenta o pré-escolar no Centro de Educação Integral (CEI), “tem apoio escolar através da aplicação Educabiz, videoconferências da sala dos quatro anos, e pela criação de um grupo no WhatsApp com o coordenador, a educadora, a auxiliar, todos os coleguinhas e papás que mais parece um grupo de amigos”. Liliana disse achar “extremamente importante manter esta ligação, pois funciona como um fio condutor no sentido da aquisição de conhecimentos de forma mais acompanhada e pedagógica do que se fosse só com os pais. Esta iniciativa permite, sobretudo, olhar para a nossa filha e perceber a alegria dela por partilhar esses momentos com a família escolar dela, que também é a nossa”. Além disso, fez questão de enaltecer “o facto de os professores conseguirem conciliar a vida profissional, estando em casa também com filhotes pequenos”.
Quanto ao Benjamim, o seu filho mais novo que anda na AAE – Associação de Apoio à Educação, creche “O Pequeno Príncipe”, a funcionar também nas instalações do CEI, adiantou ao nosso jornal que “tem alguma ligação com a educadora através de grupos criados nas redes sociais e por telefonemas, mas também vai acompanhando a irmã em algumas atividades”. Liliana referiu ainda sentir “algumas dificuldades em arranjar o material necessário em termos de papelaria (tinteiros, pinturas, etc.), porque pelo que percebi a Olmar e a Note estão fechadas e não sei onde ir”.
Questionada sobre como ambos estão a reagir a esta nova realidade, respondeu: “Para já estamos no início, mas parece-me que estão a gostar! Têm os seus brinquedos o tempo todo, a mãe e o pai, podem fugir à rotina alimentar mais regrada da escola (o que é bom!), não obstante haver alturas em que estão mais birrentos e irrequietos”. De qualquer modo, também, “vamos tentando consciencializá-los daquilo que se passa dizendo que não podem sair nem ir à casa da avó, escola e parque ‘por causa do coronavírus’”. “A nossa filha está a planear a sua festinha e já começámos a explicar que não vai ser possível”, acrescentou.
“No mundo atual, pai e mãe só dão jantar e colocam-nos para dormir”
“Restrições à parte”, a verdade é que, segundo Liliana, “o isolamento social permite reduzir perdas humanas e isso não tem preço, ainda por cima à escala mundial”. Outra “grande vantagem”, em seu entender, “é a possibilidade de termos todo o tempo para estar em família, para ver os nossos filhos a crescerem debaixo dos nossos olhos, sermos nós a educá-los e não outro, porque, no mundo atual, pai e mãe só dão jantar e colocam-nos para dormir”.
“Desde que sou mãe este é um facto que me recuso a aceitar como normal. Mas precisamos de por a máquina a funcionar e de, como lhes ensinamos, ‘ir ganhar tostões’”, prosseguiu Liliana, apelando, ainda, a “todos que possam contribuir com a sua generosidade em prol do bem de todos, que equacionem aquilo que poderão fazer para facilitar a vida das pessoas nesta fase tão improvável no que diz respeito às rendas, empréstimos, custos dos bens essenciais (medicamentos, alimentos, informática, etc.)”. “Estamos juntos” nesta luta, como rematou.
“Estamos, enquanto família, mais próximos, mais tolerantes, mais protegidos”
Para a família Cristino, quando se fala de isolamento social, situação em que se encontra neste momento, “são mais as desvantagens do que as vantagens”. As “saudades das visitas aos avós, dos domingos familiares e dos amigos” apertam. E de que maneira! Como se não bastasse, há também “menos exercício físico e menos afetividade”. Por isso, Ana Pinho, o marido e os filhos já só pensam em “estar presencialmente com as pessoas que mais gostamos”, quando tudo isto passar.
Mas atenção que nem tudo é mau. Ana garantiu ao nosso semanário que, devido a toda esta situação de crise, “estamos, enquanto família, mais próximos, mais tolerantes, mais protegidos”. Esta economista de 46 anos continua a trabalhar e a desempenhar o papel de mãe, como sempre o fez. O marido, João Cristino, também economista, “já trabalhava muito” em regime de teletrabalho. Mas agora está em casa também para cuidar dos filhos, Maria João Cristino, de 15 anos, e Afonso, de 11. Os miúdos e o pai não saem de casa, apenas a mãe para ir para o trabalho e ir comprar os bens essenciais.
Maria João anda no 10º ano, em Artes Visuais, na Escola Básica e Secundária Dr. Serafim Leite, enquanto o irmão frequenta o 5º ano na Oliveira Júnior. Os dois adolescentes “estão em casa desde que as escolas encerraram” e por enquanto “estão a reagir bem” a esta nova realidade, “porque estão habituados a utilizarem computadores e a internet”, contou ao labor a mãe, completando: “Numa primeira fase apenas a Maria tinha aulas, trabalhos para avaliação e testes online. O Afonso veio sem qualquer informação. Posteriormente, fui contactada pela diretora de turma para iniciarem os trabalhos de casa online”. Para além disso, “ambos frequentam as ‘Mentes Brilhantes’ onde também têm trabalhos e explicações numa plataforma cedida pela instituição e Instituto de Línguas também disponibilizou trabalhos de casa. Quanto às atividades extracurriculares, “[ju-jitsu (defesa pessoal) e ténis], acabaram por serem todas suspensas”, acrescentou.
Ainda a propósito do ensino a distância dos seus filhos, Ana afirmou que, “da parte da Maria, sinto uma pressão exercida pelos professores, porque me parece que não articulam entre eles a quantidade de trabalhos pedidos para os mesmos timings”. Já em relação ao Afonso, “tem sido mais suave, os trabalhos são mais espaçados temporalmente”.