Com todos os problemas que esta pandemia nos trouxe, há um indubitável benefício, pouco valorizado, que a humanidade lhe deve. Poder-se-ia falar da melhor qualidade do ar, da água, das boas transformações da natureza, do reaparecimento de aves e insetos, do ressuscitar das coisas belas que se perderam pela destruição e desumanização daquilo a que chamamos progresso. Deixo, porém, este campo para os cientistas e académicos que com rigor e precisão o fazem melhor do que eu. Limito-me a observar outro campo, aquele a que os meus olhos sempre se habituaram a contemplar, a conhecer pelo cheiro e pela cor, pela beleza pujante ou agreste, batido pelo brilho do sol ou pelo fustigar do vento, bravio, manso pelas mãos carinhosas que o amanham ou revoltado pelo desprezo e abandono.
Há dias ouvi o cuco: cu-cu, cu-cu. Não o ouvia há anos. Espreitava-me empoleirado num ramalho. Como fazia em criança, respondi-lhe: cu-cu, cuco ramalheiroquantos anos tenho solteiro. Só que vai tão longe esse tempo… que o cuco se deve ter fartado de rir. Nesse mesmo dia, uma poupa cor de toupeira, com uma crista matizada de branco, caminhava pelo campo fora, garbosa e imponente, como se fosse a dona do mundo. Depois cantou:poupa, poupa, tudo épouco. Mau sinal, diziam os antigos, ano de fome. Ela lá sabe. Voando pelos ares vê melhor do que aqueles que se passeiam cá por baixo. Pegas, melros, pombos-rolos são aos bandos. Fazem estragos, depenicam tudo o que nasce da terra e das árvores, mas é o preço que cobram por dar vida e beleza à natureza adormecida. Porém, o que mais me surpreendeu foi uma joaninha, poisada numa haste de uma espiga de centeio ali nascida de alguma semente talvez trazida pelo vento. Joaninhas, grilos, cigarras, alfaiates, louva-a-deus, pirilampos desandaram por completo. A joaninha, pequenina, vermelhinha, luzidia, cheia de pintinhas pretas, poisada na haste, libertava um mundo de visões e sensações indescritíveis. Joaninha, Ladybug, Marienkäfer, aqui ou lá, sempre feminina e distinta.
A arte é o expoente máximo da expressão do sentimento. Particularmente a arte de escrever, a arte da palavra é por vezes tão difícil e dolorosa. Criar pela escrita o que aquela joaninha trazia no vermelho luzidio do seu vestido às pintinhas pretas, as recordações que o tempo levou, os reflexos dos olhos que viram searas de trigo e centeio a ondular ao vento, as vozes e os rostos distantes não é tarefa para mim. Ficam a vontade e o sonho.
Quando me aproximei da Joaninha ela voou, mostrando por baixo das asas vermelhas um outro par de asas sedosas e rendadas. Joaninha aboa, aboa quo teu pai foi pra Lisboa, com uma faca de latão, espetada no coração.
Eva Cruz