Pena de morte

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Era uma tarde do começo da Primavera.

Sentada no banco do meu jardim num deleite bucólico, a contemplar as flores de pão e queijo amarelas, espreitando por entre os fetos de pé preto, vi uma melra com uma palhinha no bico, disparar de um galho meio despido e entrar que nem uma flecha num arbusto rente à hera do velho muro. Reconheci a fêmea pelo seu bico e penas acastanhadas salpicadas de cinzento. Ali ia nascer um ninho e dentro Primavera.

Dias seguidos, fui observando a melra a construir a sua casa com palhas, pequeninos gravetos e penas levadas no bico. De vez em quando, o melro, no seu fato preto de bico amarelo, ajudava e percebi que a emancipação já tinha chegado às aves, ou então sempre assim fora e mostravam-se mais evoluídas do que os humanos. Feito o ninho, logo foram postos quatro ovinhos azulados, de manchas avermelhadas, não saindo a fêmea de cima deles, enamorada no seu choco, durante cerca de duas semanas. Quando o melro a via sair espreitava de longe pelo buraquinho, não fosse ela enjeitar, e  não tardou em ver quatro cabecinhas nuas, de bico tenro para o ar. Em breve se haviam de vestir e voar pelos céus de Primavera.

Um gato malhado de branco e preto, pequenito ainda, o restante de uma ninhada da gata amarela, espreitava, num galho seco de uma vide morta, a pequenina presa, e de um salto acrobático enfiou-se no buraco, agarrando o ninho por entre os bigodes. Foi tal a fúria, que o assustei e na debandada deixou cair o ninho com os passarinhos despidos e esfacelados. A pobre da mãe melra chegou e chorou com pios desgarrados a sua desgraca. O melro voltejava por ali, descontrolado.

Na calçada, ouvi o barulho trepidante do tractor, que matou o gato com as rodas traseiras. Na minha fúria disse: “bem feito, foi como a esmola num pobre”.

A gata amarela chegou, cheirou o corpo do gatito inerte e em cima do muro chorou o seu cântico fúnebre. Apoderou-se de mim um sentimento de pena e quase esqueci os passaritos nus. 

Recordei então um texto de Camus, ‘Reflexões sobre a guilhotina’.

Numa aldeia deu-se um crime hediondo. Um assassino tinha chacinado uma família de lavradores, incluindo os filhos pequenitos. O caso revoltou a população, que considerava a decapitação uma pena leve demais para tal monstro. No dia da execução, um aldeão, na sua revolta, quis a todo o custo presenciar a morte do criminoso. Só assim poderia saciar a sua sede de vingança. Levantou-se de madrugada, pois tinha à frente um longo percurso a pé, uma vez que o lugar da execução era na cidade.

Viu chegar o condenado. Tremendo de medo, mal se erguia nas pernas. O rosto congestionado, implorava pela vida. O aldeão, depois de ver a cabeça rolar pelo chão, voltou para casa, recusou-se a falar do caso e vomitou. Dali para a frente, apagou-se a imagem do crime hediondo. Na sua mente ficou apenas e para sempre o rosto do condenado.

Quem dera que, na próxima Primavera, a melra volte ao velho muro de hera para cantar um novo hino à vida.

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