Nunca me cansa aquela costa rugosa e negra, batida pela espuma branca do Atlântico, às vezes envolta numa neblina misteriosa e nostálgica, a fazer adivinhar terras bem distantes do outro lado do mundo. Sempre me encantou a Galiza, terra de lendas, de mistérios, de poetas, de jograis e trovadores. O mar vem ao encontro da terra beijando-se ambos numa cumplicidade única. Os campos, os pinheiros e os rebanhos convivem frente a frente com o mar sem areia de permeio, como amigos desde o início do mundo. Hoje compreendo muito bem a relação de Zeca Afonso com a Galiza quando diz “ A Galiza é para mim uma espécie de Pátria espiritual”.
Eram já muitas as saudades destes pequenos passeios, impedidos pelo maldito vírus e pelo fecho das fronteiras, saudades da paisagem, dos mariscos e pescaditos, frescos e a saber a mar. Começámos pelo “Chupa Ovos”, na Guarda ou La Guardia, como se dizia antes. Não sei de onde vem o nome deste restaurante, discreto mas distinto no sabor e apresentação dos seus pratos. Tem como símbolo um desenho de um cão a comer um ninho com ovos, debaixo do olhar indiferente do pastor, um desenho simples que parece feito por uma criança. Muito conhecido, foi-nos indicado há anos por amigos galegos que frequentam o “Molino”, um pequeno hotel na foz do rio Minho, do lado espanhol mesmo em frente a Caminha e Moledo, onde passámos belos momentos. Há muito que os donos, familiares de antigos resistentes e vítimas do franquismo, são nossos amigos e amigos de muitos outros amigos que temos na Galiza, sobretudo em Ourense, aos quais nos unem laços de cumplicidade académica, intelectual e artística. Ourense, conhecida pela “Atenas de Galicia” tem uma vida cultural intensa, muito ligada às Artes e às Letras. Aí almoçámos, um dia, em casa de uma amiga, com o conhecido Alonso Montero, tido como o mais conceituado professor de literatura da Galiza, há pouco tempo homenageado na cidade de Vigo.
Apesar do receio do contágio pandémico, lá fomos até Vigo, atravessando a sempre bonita Baiona, saboreando toda a beleza da costa e das negras e misteriosas ilhas que ao longe reflectem o verde e azul do mar. Pernoitámos na cidade, não deixando de lado as célebres tapas e o convívio, único, ainda que à distância, dos espanhóis sempre “en la calle”, esfusiantes e bem humorados, senhores de uma alegria e boa disposição tão contagiante ou mais do que o vírus.
Depois de visitarmos o Campus Universitário de Vigo que impressiona pela sua grandeza e beleza, semeado de faculdades, residências universitárias e muitas estruturas e serviços académicos nas entranhas de uma colina extremamente arborizada, regressámos por Ponteareas e Salvaterra de Miño, apesar da vontade de seguir viagem até Muros, Corcubion, Finisterra, Corunha e depois Astúrias, Pais Basco, tudo terras que tantas vezes percorremos quando a idade o permitia.
Atravessámos o Rio Minho pela ponte nova até Monção. Outrora rota de emigrantes clandestinos, a travessia era feita numa jangada que ainda chegámos a usar. Tudo isto me fez recordar a mulher heroína do meu último livro. Senti uma espécie de arrepio ao imaginar aquela mãe com uma carreira de filhos agarrados à saia, um ao colo, outro no ventre, pela calada da noite, rumo ao desconhecido, ao amparo ou desamparo da sorte.
Chegámos a Monção, terra nossa. Esperavam-nos o excelente bacalhau e o retinto vinho verde.
Recordei Brecht e os seus pequenos prazeres – “Vergnügungen”.