Sonhei que a minha casa era um quadrado elevado de cimento com cobertura de chapa, sem janelas ou porta, pousada no meio de um monte, completamente isolada do mundo.
Vivia só, não tinha emprego nem dinheiro. Ansiava somente por um pouco de pão, o suficiente para apagar a fome. Assim, no final do dia, saía e caminhava até ao mercado da vila, onde aguardava que as peixeiras deixassem as cabeças esmagadas do peixe vendido,
apanhava-as do chão, juntando-se aos legumes murchos e de pontas queimadas que se aconchegavam no fundo dos cestos dos agricultores. Esperava que as vendedoras saíssem, deixando as suas bancas, para ficar eu, sozinho, sem testemunhas , a fazer estas minhas compras para as refeições do dia. Mais tarde, atiçando a fogueira, numa velha panela de ferro confecionava manjares dignos da minha pobreza. Pela madrugada, uma vez por semana, “assaltava” os contentores do hipermercado, sito na zona rica da vila, e transportava, no meu velho saco, os manjares para o fim-de-semana, arrecadando-os por classe: enlatados, lacticínios e fruta. Todos os alimentos em boas condições, que esperavam por mim. No frio da minha casinha, antes de me alimentar, rezava por cada pessoa que tinha lançado ao lixo aqueles gostosos mimos, desperdiçando-os, por pertencerem a uma sociedade consumista, numa cultura individualista e, principalmente, por não terem nascido pobres, proporcionando-me momentos únicos de prazer: matar a fome. Um dia, ao remexer no lixo, li num velho jornal gordurento que 18% da população portuguesa está em risco de pobreza extrema e eu pertencia a este grupo; e que 467 euros de rendimentos mensais são o valor considerado pelo INE como limiar da pobreza e eu não possuía nem metade para sobreviver; e que no mundo, a cada 10 segundos uma criança morre devido à fome e eu tinha entrado na idade adulta que sortudo eu era. Quando despertei deste meu sonho/pesadelo dei por mim a maldizer o poder político, pela sua falta de vontade de matar a sede e a fome bebendo ou comendo os milhares de pessoas que morrem todos os dias, com as milhares de toneladas de alimentos que são desperdiçados, culpando-as pela sua pobreza. São esses homens que lideram o rumo de cada país e se esquecem de que também os pobres fazem parte da população que os coloca nos pódios do poder e da riqueza.