Memórias

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Este é o meu velho consultório de cardiologia de há quase cinquenta anos, fechado desde o início da pandemia. Entro lá de vez em quando, sento-me no sofá, e os meus olhos enchem-se de vazio. Deu-me para fotografar as coisas mais marcantes. Não admira. Por aqui passaram milhares de pacientes, de Vale de Cambra, S. João da Madeira, Santa Maria da Feira, Oliveira de Azeméis, Sever do Vouga, Arouca, Alvarenga, Castelo de Paiva, Castro Daire, Cinfães do Douro, Amarante, Gondomar, Porto, Matosinhos, Espinho, Ovar, Estarreja, Aveiro, Albergaria e mesmo de mais longe, como S. Pedro do Sul, Viseu, Carregal do Sal, Guarda e até de Lisboa. Por aqui passaram também neste meio século muitos emigrantes, sobretudo em tempo de férias, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Suíça, do Luxemburgo, da Venezuela, do Brasil e até dos Estados Unidos.

Uma das fotografias que fiz e que não cabem neste jornal mostra dois aparelhos, ecocardiógrafos. O mais pequeno, do lado esquerdo, um Alloka SSD 110 S (peça de museu), foi o primeiro ecocardiógrafo bidimensional que entrou no país, importado directamente do Japão. Outra foto mostra o último que adquiri e que funciona correctamente. Tive ao todo oito ecocardiógrafos, três neste consultório e mais cinco no Gabinete de Ecocardiografia, em colaboração com os meus grandes e inesquecíveis amigos Dr. Duarte Correia e Professor Cassiano Abreu Lima. Entre eles, o primeiro Eco-Doppler a cor. Havia apenas dois laboratórios de Ecocardiografia no Porto que serviam todo o norte de Portugal.

Outra foto mostra a velha secretária da minha empregada Aldina, mulher carinhosa e simpática que os doentes adoravam, conhecida por todas as redondezas e que sempre me acompanhou em quase sessenta anos, desde o início da clínica geral em Vale de cambra, antes e depois da guerra da Guiné.

Não esqueço a Ilda, antiga empregada desde o tempo dos meus filhos pequenos, grande amiga, a mulher que sempre manteve o consultório limpo e asseado, apesar de velho e gasto.

Uma outra fotografia mostra o soneto que dediquei ao meu pai e que ainda se encontra na parede da primitiva sala de espera e as últimas são algumas das minhas primeiras pinturas que ainda por lá se encontram penduradas.

A despeito da idade, tudo poderia acabar de forma menos dura e menos triste, se não fosse a maldita pandemia. Mas a vida é assim e não há volta a dar-lhe.

 

O meu pai

Tão cedo a esta vida te roubaram

Saudoso pai, meu bom e grande amigo,

Que mal teus olhos fundos se fecharam

Boa porção de mim partiu contigo.

Flores e velas, preces lacrimosas,

– oh! Alienas artes da razão!

Ainda bem que não te iludem rosas,

Meu doce pai, que em tudo és meu irmão.

Minha fé, minha crença, minha idade

De homem-filho, é grito de homenagem

Que outro não sei, sem lágrimas, sem prantos.

Mãos dadas pelos céus da eternidade,

Nesse reino sem trono e sem linhagem

Vives tu, vivem papas, reis e santos.

Adão Cruz, 1972

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