Quem dera, neste tempo, lá poder voltar! Porto de abrigo, porto seguro para tantos que ali atracaram. Hoje, em confinamento total, manda a ética e a cidadania que tal não se faça.
Em tempos de pandemia, o confinamento tolhe o corpo e a mente. Para fruição de alguma liberdade, sempre que possível, procurávamos o ar livre, bem longe de tudo quanto é civilização. Nada melhor do que os recantos mais escondidos da serra, a costa marítima, as margens dos rios ou os recortes da Ria por entre campos a perder de vista.
Começámos pelo Arestal, planalto do Maciço da Gralheira, com um horizonte onde a vista se perde e vai até ao mar, percorremos aldeias por ali dispersas, terras recatadas e encantadas, recheadas de história, sulcadas pelo rio Caima, cascatas, riachos, levadas e açudes, atravessados por pontes ancestrais. E o ar puro da serra entra dentro de nós a renovar o ar dos pulmões, no meio deste tesouro natural de vegetação luxuriante. Descemos ao Vouga que no seu “ram-ram” eterno caminha para a Ria. Recordámos belos tempos com as crianças e os amigos nos areais deixados a descoberto no tempo mais quente, lembrámos o “Vouguinha” com a linha ali mesmo ao lado mirando o rio, caminhando para a Ponte imponente do Poço de Santiago que o atravessa em Pessegueiro. Um belo passeio que purificou o corpo e alma.
Ao outro dia, um dia de sol intenso, de céu limpo e temperatura de Verão, fomos, tal como o rio, de novo à procura da Ria, onde ambos misturam as águas em plena paz. Esperava-nos a caldeirada de enguias, já encomendada na Taberna d´Alcina, temperada com néveda, planta aromática parecida com a hortelã, que por ali cresce, e saboreada a sós, pois não havia lá mais ninguém. Revisitámos a bateira desencalhada ali deixada ao abandono final, saboreámos o bater no rosto daquele sol temperado com cheiro a maresia e metemo-nos pelo meio dos campos ao longo de estradas de terra batida. Verdadeiros paraísos da natureza no seu estado mais puro e genuíno. Do cais da Bestida, Cais da Mamaparda, Ribeira de Pardelhas, Cais do Bico, Cais do Chegado, Cais da Cambeia, Cais da Ribeira Nova até ao Porto de Abrigo, por entre campos de vegetação rasteira, juncos e plumas prateadas pelo sol que lhes dava de frente, aves sem conta nos sapais da Ria ou nos campos recém-lavrados, não vimos vivalma a não ser o senhor António. Na sua linguagem vareira, emigrante de torna viagem, tinha percorrido grande parte do mundo, vivera muito tempo em Cape Town (keip´ton, na sua pronúncia vareira) e nada mais lindo encontrou do que a sua terra natal, a sua Ria, onde fora pescador durante vinte e cinco anos e onde destinou acabar os seus dias. Falou-nos das aves sem conta, dos peixes tão variados, das famosas enguias, do berbigão, das solhas das pedras, da riqueza daquelas águas e daqueles campos adubados pelo moliço. “Aqui não falta nada e é um sossego. Aqui não anda o vírus. Trago a máscara no bolso só para quando alguém como os senhores por aqui passar.”
Dali avistámos a antiga Foz do Rio Vouga, conhecida por Rio Velho. A nova Foz fora desviada para outra abertura há cerca de dois séculos e é agora a Foz do Rio Novo do Príncipe que em tempos idos visitámos. Assim chegados ao Cais do Chegado, esperava-nos o Porto de Abrigo, outrora ponto de atracação de muitas embarcações onde existiram trapiches palafíticos, pequenas construções aparentemente frágeis, assentes em estacas de madeira, que serviam de armazém e embarcadouro aos barcos de pesca que ali acostavam.
Porto de Abrigo que só a Natureza tão bem sabe dar. E apetecia ali ficar. Como diz Raúl Brandão, não há ninguém que não fique seduzido pela Ria. É sítio para contemplativos e poetas. A luz aqui estremece antes de pousar.