A natureza desperta deste sono invernal com todo o vigor e pujança. Ao longe, a serra cobre-se do amarelo da flor do tojo, à espera da segunda demão, mais brilhante e luzidia da flor da giesta, nos princípios de Maio. Os campos estendem pelo vale o seu manto verde salpicado de todas as cores, ao som dos gorjeios e sinfonias da passarada.
Está uma tarde solarenga, quase de verão, e neste calmo recosto na cadeira, no quentinho do sol e na frescura do silêncio, as memórias abrem-se em meu redor. Do que me havia de lembrar, ao ver o saltinho de pardal a dois metros dos meus pés! Da caniçada!
A caniçada era uma pequena armadilha piramidal feita de paus atados com vimes, com uma pequena artimanha de madeira a que chamávamos pingarelho. No chão, em cima da erva, onde se espalhavam alguns grãos de trigo e milho, armava-se a caniçada, ligeiramente aberta pelo precário equilíbrio de uma pequena esgalha apoiada no pingarelho. Quando o pássaro entrava, por mais leve que fosse o seu peso, desequilibrava o sistema fazendo a caniçada tombar. Era uma alegria ver lá dentro o passarito, habitualmente o pardal, raramente um melro, mais esperto e desconfiado.
Hoje, no fim da vida, nenhum de nós seria capaz de tão infantil malvadez, triturados que estamos da selvajaria deste mundo. Preferimos de longe a liberdade, o seu canto livre embalando o amanhecer e anoitecer destes dias tão tristes. Não há caniçada que valha esta melodia do fim da tarde, cruzando bicos amarelos, saltinhos de pardal e a voz do pequenino e pardo rouxinol, em cântico de namoro ou ao desafio, enchendo-nos a alma de poesia com a sinfonia do pôr-do-sol.
…Lentamente, fecho os olhos, e sonho com a paz, a liberdade, a fraternidade e o fim de todas as caniçadas do mundo.