Foi sempre o campo da eira, apesar de há muito ela não existir. Na eira do meu tempo de criança, secava-se o milho e o feijão e por lá voavam muitos pássaros e as praganas da ventaneira. Ao lado arrulhavam as pombas no pombal e um ou outro pombo-correio, vindo de longe, meneava a cabecita, rondando os ares à procura de algum rumo traçado no seu
minúsculo cérebro.
Hoje, o campo está pejado de árvores de fruto, umas mais velhas, outras mais novas, mais raquíticas ou escorreitas, produzindo dentro da mais anárquica e natural liberdade. Mesmo a dar pouco ou nada, por lá vão vivendo ano após ano até secarem. Não há o hábito de cortar árvores. Se não dão fruto, dão folhas, flores ou alguma sombra.
Ao jeito de cada uma lá vão dando maçãs santiagas, vermelhinhas e perfumadas, luzindo por entre a abundante folhagem, outras maçãs mais serôdias ou temporãs, pêras e pêros, limões abafados pela figueira que já deixa ver os figos a engordar, dióspiros ainda imberbes e uvas a prometer. Impõe-se com solenidade no meio daquela selva a velha laranjeira que já deixa ver as laranjinhas novas e verdes no meio das laranjas velhas que caem de estelo. Até araçás, a quererem avermelhar, crescem enroscados nos kiwis.
Os pessegueiros também por lá convivem, de boa raça ou bravios. Há uma qualidade estranha e rara, espécie imigrante não se sabe de onde, que tem proliferado e que carrega pêssegos brancos, carecas, redondinhos, que parecem ameixas. São tantos que nem
a voraz passarada consegue dar-lhes vazão. A árvore não é alta e por isso são fáceis de colher. De tão carregada, verga ao jeito da mão e há galhos que até se arrastam pelo chão.
Peguei num cestinho e fui colher alguns, antes que fosse tarde. À sombra, ronronava um gato dos muitos que por vezes lá dormitam a sesta. O calor era tanto que não tive coragem de o escorraçar. Ele também, cansado ou velho, nem sequer se mexeu com a minha aproximação. Apanhei o que quis e me apeteceu e ele sempre quietinho a dormir.
Reparei, entretanto, que um dos pessegueiros poisara um braço, como que a descansar da carga, sobre uma cerejeira que nunca dera nada mas que ainda se mantém coberta de folhas verdinhas, talvez devido à sombra que a protege. As suas folhas nem são assim muito diferentes das do pessegueiro.
De tal modo se abraçam as duas árvores naquela brenha, que dei comigo a colher pêssegos da cerejeira. São segredos da natureza… Talvez a cerejeira, que nunca dera filhos, se sinta feliz por ter adoptado os pesseguitos nascidos do abraço cansado mas carinhoso do pessegueiro.