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Vítor Dias tem 49 anos e é natural de S. João da Madeira. Estudou nas escolas primárias das Laranjeiras e das Fontainhas, no antigo ciclo preparatório e na Escola Secundária nº 2, atuais Escola Básica e Secundária de S. João da Madeira e Escola Secundária João da Silva Correia, respetivamente. Entrou no curso de História, variante de Arqueologia, na Universidade Clássica de Lisboa, tendo concluído a licenciatura, ramo científico, na Universidade de Coimbra. À qual acresce a licenciatura em História, ramo de formação educacional, profissionalizando-se no ensino. Lecionou História na Escola Secundária Adolfo Portela em Águeda. Também na Universidade de Coimbra concluiu o mestrado em Arqueologia sob a orientação do Professor Doutor Jorge de Alarcão. Na Universidade de Évora desenvolveu a dissertação de doutoramento “A Cerâmica de Ammaia” sob a orientação dos Professores Doutores Carlos Soares Fabião (Universidade de Lisboa), Frank Maurice Vermeulen (Universidade belga de Ghent)e Filipe Themudo Barata (Universidade de Évora). Tem experiência de mais de duas décadas em atividade arqueológica, tendo dirigido e participado em mais de 130 trabalhos arqueológicos registados no Portal do Arqueólogo, executados em projetos académicos, públicos ou privados. A 1 de abril de 2021 assumiu a função de novo diretor do Museu Monográfico de Conímbriga – Museu Nacional. O mandato tem três anos e é renovável mais duas vezes por igual período de tempo.
O que o levou a candidatar-se a este cargo?
A coerência do meu percurso e a certeza de que iria arrepender-me caso não aproveitasse esta janela de oportunidade de concorrer a Conímbriga. Quando vi o concurso em junho de 2020 ia fazer uma campanha de escavações na cidade romana de Balsa, em Tavira, com a Universidade do Algarve, que acabou cancelada devido à pandemia. Nesse espaço temporal que ficou livre, tive o atrevimento de concorrer a Conímbriga. Digo atrevimento porque a minha geração cresceu a admirar Conímbriga como referência cultural e patrimonial. De facto, depois, a solidez curricular e o empenho dedicado à proposta apresentada ao concurso deram frutos.
A sua ligação a Coimbra também o influenciou?
Sem dúvida. A minha relação com Coimbra surge de forma natural. É muito sequencial e instintiva. Marca o início da minha formação académica e da minha entrada no mercado de trabalho. Depois de estudar em Coimbra acabei por ficar sempre. Aconteceu. Não foi planeado. Na verdade, já estou há mais tempo em Coimbra do que em S. João da Madeira.
“Vejo Conímbriga como um centro de investigação e de conhecimento”
Como se sentiu quando soube que tinha sido o escolhido?
Com um grande sentimento de responsabilidade e amplo espírito de missão. É um cargo com muita visibilidade que assumi com grande responsabilidade, sobretudo pelo passado de grande credibilidade associado ao museu e às ruínas. Acho que veio num momento de maturidade interessante. Acredito que consigo contribuir para a sua evolução.
Qual a importância de Conímbriga para o país?
Essencialmente, vejo Conímbriga como um campo arqueológico. Muitas vezes, as pessoas esquecem-se do campo arqueológico, mas de facto o museu só existe por causa do campo arqueológico. Por isso é um museu monográfico. É extremamente importante porque marca a museologia e a museografia portuguesa desde as décadas de 60 e 80. Não só marca a investigação arqueológica, desde a década de 30, como também os museus nacionais. Vejo Conímbriga como uma marca cultural de referência com prestígio reconhecido a nível nacional e internacional.
“Temos noção que é impossível para uma geração investigar o sítio todo”
É a primeira vez que assume a liderança de um museu. Como tem sido este desafio?
Tem sido bastante trabalhoso e gratificante, a equipa é bastante sólida e de facto acho que vamos conseguir desenvolver projetos bastante interessantes. Não só na parte das ruínas, como também no museu. Espero que os momentos históricos nos sejam favoráveis. Conímbriga já não tem investimento avultado desde a década de 80. Isto também está intimamente relacionado com os ritmos políticos. Esperemos que mesmo em contexto de pandemia consigamos ajudar a esta retoma patrimonial, económica e turística. Vejo essencialmente Conímbriga como um centro de investigação e de conhecimento. Acho que tem de ser essa a base para o sítio.
O que vai ao encontro da proposta que apresentou no concurso?
Sim. A base conceptual da minha proposta privilegia entender o território onde está Conímbriga e criar um cluster experimental de ciência. O objetivo é cativar pequenas ou grandes colaborações com as diferentes escolas da região de Coimbra e que dessas colaborações possa resultar sempre um produto final, físico ou digital, cujo palco sejam o território, o museu ou as ruínas de Conímbriga. O ideal seria que depois estabelecêssemos uma rede de parceiros sólida e coerente que leve à criação de um verdadeiro fórum cultural.
“Será interessante conseguirmos fazer um trabalho de arqueologia não invasiva com métodos geofísicos”
A investigação arqueológica poderá voltar a ser algo consistente?
Acredito que será possível a investigação arqueológica continuar a ser consistente e prolongada em Conímbriga. Isso é essencial porque temos uma grande área ainda por investigar, este facto confere ao sítio não só características de campo arqueológico como de reserva arqueológica. Para ter uma ideia a cidade antiga terá sensivelmente 22 hectares, o Estado tem 18, estão escavados quatro e visitáveis sete. Temos noção que é impossível para uma geração investigar o sítio todo. Mas isso até é bom porque permite a diferentes gerações beneficiar do aperfeiçoamento e da evolução tecnológica e metodológica. Por exemplo, vamos agora incluir mais 50 peças em exposição, algumas são provenientes das escavações antigas, mas também vamos ter peças de escavações mais recentes. É interessante constatar que dentro do espólio já arquivado existem sempre novidades, mesmo em peças que aparentemente achávamos já totalmente conhecidas. Acredito que vai ser possível e será muito interessante fazer um trabalho de arqueologia não invasiva com métodos geofísicos no sítio. É uma ambição que gostava de materializar no campo.
Gostaria que Conímbriga voltasse a ser um marco nas visitas de estudo das escolas?
Sim. Durante muito tempo o Museu Monográfico de Conímbriga foi visitado por grande parte das escolas de Norte a Sul do país, mas a multiplicação da oferta museológica a nível nacional levou à diminuição do público escolar. De qualquer modo penso que continua a ser um museu âncora para trazer pessoas à região. Conímbriga continua a receber cerca de 100 mil visitantes por ano, o que é um número muito significativo.
“Conímbriga tem que ser um parceiro interdisciplinar enquadrado numa estratégia regional em prol do território”
Há alguma estratégia para combater a polarização do turismo entre Porto e Lisboa?
Temos ideias. Conímbriga é um parceiro patrimonial demasiado importante para ser omitido na região centro. Reparámos, por exemplo, que a partir do momento que a Universidade de Coimbra foi considerada Património Mundial da Humanidade pela Unesco, passou a ser um dos sítios mais visitados no país. Pensando a região e todo o património disponível, acho que Conímbriga tem que ser um parceiro interdisciplinar enquadrado numa estratégia regional em prol do território.
Qual o maior desafio dos museus em tempos de pandemia?
O maior desafio é não existir perda de público e fazer a gestão adequada de uma variável nova, o medo. O impacto da pandemia nos museus está muito dependente dos públicos. Temos de reconquistar a confiança dos públicos e depois podemos voltar à dita normalidade.Primeirotentar aproximarmo-nos dos 100 mil visitantes ano. 2021 também vai ser um ano excecional, mas era ótimo que para o ano já houvesse um aproximar desses números. Não vejo uma relação direta entre o número de visitantes e o trabalho bem desenvolvido em qualquer museu. Acho que se pode estar a fazer um bom trabalho e a estatística não estar a ser tão favorável. É quase a mesma relação direta que se tenta fazer com a estatística das escolas por causa das notas, não é? Não se deve ter uma leitura direta em relação aos dados. Há subtilidades que têm de ser analisadas. Há muitos contornos à volta dos dados e dos critérios estatísticos.
“O maior desafio é não existir perda de público e fazer a gestão adequada de uma variável nova, o medo”
O que acha da possibilidade de Conímbriga poder vir a ser classificada como Património Mundial da Humanidade?
Acho que temos de trabalhar esse dossier de forma muito meticulosa, com vários parceiros da região e termos uma candidatura credível e muito sólida. Deve ser um trabalho conjunto continuado. Se não tivermos sucesso, vermos o que há para melhorar e não desistir.
Se isso acontecer vai ser uma enorme catapulta para Conímbriga…
Sim. Sem dúvida nenhuma. Se isso acontecer será garantidamente um mundo novo, uma dimensão nova para o museu, para as ruínas e para a região.

O museu comemora 60 anos a 10 de junho de 2022. Está prevista uma comemoração especial?
Sim. A ideia é irmos além da comemoração festiva e aproveitarmos a data para falarmos também sobre arqueologia e a forma como a investigação tem sido desenvolvida no sítio. Tentar recolher o contributo de elementos fundadores, aproveitar o conhecimento deles e, simultaneamente, tentarmos iniciar umas jornadas arqueológicas que se pretendem regulares para que os investigadores de arqueologia romana em Portugal e não só possam habituar-se a ir a Conímbriga. Se não anualmente, bianualmente. Também gostava de aproveitar esse aniversário para planearmos e pensarmos o museu a longo prazo. Não só numa década ou duas, mas darmos esta noção de continuidade. Se planearmos a dois ou três anos as pessoas, todas elas, têm tendência a colocar-se dentro do plano. Se planearmos a 20, 30, 40 ou a 50 anos percebemos que somos só mais um elemento da continuidade da investigação do sítio. Acho que de certo modo temos uma abordagem mais científica e mais cirúrgica para o sítio.
Classificação da Unesco: “Se isso acontecer será garantidamente uma dimensão nova para o museu, as ruínas e a região”
Sente-se tanto de S. João da Madeira como de Coimbra?
Sinto-me igualmente bem tanto numa cidade como noutra. Há uma diferença entre ambas porque S. João da Madeira surge como um vínculo quase embrionário. Eu diria que os padrões éticos, morais e laborais foram aqui estabelecidos. Depois acabei por desenvolver outros conhecimentos e outras valências fora. Não só em Coimbra porque depois acabei por fazer trabalhos de Norte a Sul, desde Monção até Tavira. Portanto há aqui um conjunto de etapas cronologicamente sequenciadas por escalões etários. São duas cidades que, apesar de distintas, coloco num patamar muito idêntico. Mas o vínculo a S. João é muito emocional e embrionário.
O que acha da oferta e dos espaços culturais da sua terra natal?
Tenho notado que mudámos muito nessa dimensão. Temos muito mais oferta e espaços culturais. De certo modo temos tido a capacidade de proporcionar condições e equipamentos para que o público se habitue a espetáculos culturais. É uma conquista que se faz a médio prazo. Acho que temos trabalhado muito bem e noto, acima de tudo, que nestas quase três décadas, em especial nos últimos anos, a cidade nesse aspeto tem crescido de forma harmoniosa e sustentada. É o reflexo também do contributo das novas gerações que têm dado um acréscimo de qualidade à abordagem político-cultural de Norte a Sul do país. Somos um país pequeno, mas muito distinto. Temos especificidades a Norte muito próprias e isso é fascinante.
Quais as recordações que tem de S. João da Madeira?
Em S. João da Madeira as vivências são essencialmente da família que funciona como âncora e atribui coerência ao percurso, da escola e do basquetebol da Sanjoanense. Joguei dos 12 ou 13 até aos 18 anos. Acabo por sair de S. João da Madeira aos 18. Fui para Lisboa e depois para Coimbra. Tenho orgulho na terra. Recordo os bons princípios de camaradagem e de solidariedade, bem como o lema do labor. De facto, há uma cultura de trabalho que ficou. Vontade de fazer bem e muito, dentro do possível das nossas capacidades. Depois há o vínculo emocional.
Vem com frequência à sua terra natal?
Não tanto como desejava, mas sim. Os meus pais moram em S. João da Madeira. Felizmente ainda tenho um bom núcleo de amigos. Não os vejo com a regularidade que via, mas ainda tenho bons amigos em S. João.
“Lembro-me de logo no 7º ano ter o apelo da História e da Arqueologia”
O que o levou à escolha da formação académica?
Lembro-me de logo no 7º ano ter o apelo da História e da Arqueologia. Na altura o que toda a gente me aconselhava era não vás porque isso é demasiado exótico e provavelmente não correrá bem. No 12º ano decidi ir na mesma porque acreditava que se me dedicasse iria conseguir. A família deixou-me perfeitamente à vontade e tranquilo com a opção, o que foi bastante tranquilizador.
Arrepende-se?
Não, não me arrependo. Todo este percurso não me leva a arrependimentos. Sinceramente foi um trajeto que me agradou e do qual retiro grandes ensinamentos. Há um equilíbrio interessante entre o trabalho de campo e o gabinete. Nada monótono. Ainda sinto aquela vibração de estudar. Quero ser um estudante a vida toda. Ter a capacidade de ser surpreendido pela aprendizagem e pelo conhecimento.
Prefere o trabalho de escritório ou de terreno?
Eles são compatíveis, mas prefiro campo. Para fazermos campo temos de fazer relatórios logo a seguir. Ainda sinto o apelo do campo, mas neste momento vai ser quase impossível. As exigências processuais não permitirão.
“Sinto que é um privilégio descobrir, interpretar e perpetuar uma história que estava completamente esquecida”
Como se sente um arqueólogo por literalmente desenterrar histórias da História?
Sinto que é um privilégio sermos o agente que consegue chegar a um sítio sedimentado e através de um método científico de escavação descobrir, interpretar e perpetuar uma história que estava completamente esquecida.

Há alguma descoberta que tenha feito e possa partilhar com os nossos leitores?
Sim. Uma epígrafe que acabei por descobrir a escavar na cidade romana de Ammaia (Marvão). Na altura apareceu um fragmento de mármore bastante bem definido e mais tarde veio-se a confirmar que era um pedestal, base de estátua consagrada a Mercúrio Augusto “MERCVRIO AVG(usto)SACRUM” (ver foto ao lado). Neste momento está musealizada no museu de sítio dessa cidade em São Salvador de Aramenha, Marvão.
O património e o progresso sempre foram compatíveis?
Sim. O património é um bem intemporal, universal e com valor exponencial. Demorou muito tempo para uma grande maioria da sociedade perceber isso. Ao longo da nossa História temos frequentemente necessitado de uma validação externa para reconhecer como singulares e valiosos os nossos patrimónios. A democratização do ensino conseguiu atenuar uma certa iliteracia cultural. Todo o investimento que possamos fazer no património é uma mais-valia e uma garantia de retorno.