“Nessa altura, para o Estado Novo, usar calças era uma questão de empoderamento da mulher porque quem vestia as calças era o homem”, recordou a ex-secretária ao labor 

Maria Aldina Valente Pinho, de 69 anos, nasceu e cresceu em S. Roque, mas vive desde 1983 em S. João da Madeira.

Apesar das raízes ligadas à agricultura dos avós e dos pais, sempre foi incentivada pela família a aproveitar as oportunidades que lhe permitiriam alargar os seus horizontes numa altura em que o nosso país era governado pelo regime ditatorial salazarista e em que a mulher era encarada como um ser humano inferior, logo submisso, ao homem.

Dos 11 aos 17 anos, frequentou o curso de Formação Feminina na antiga Escola Industrial de S. João da Madeira. “Um curso do Estado Novo que tinha como objetivo a formação da mulher para ser mãe e dona de casa” e que foi “fundamental” no desenvolvimento e refinamento das pessoas, considerou Aldina Valente.  Entre as disciplinas lecionadas constavam trabalhos manuais, higiene, economia doméstica, desenho, história, ciências, geografia, datilografia e línguas como o francês que na altura era “muito chique”. Depois do Curso de Formação Feminina, Aldina Valente quis continuar a alargar os seus horizontes. “Tive vontade de ir estudar para o Colégio Aurélia de Sousa no Porto para dar equivalência ao 7º ano de então. E depois para a universidade”. Só que aos 18 anos deixou de parte a universidade e agarrou a oportunidade de trabalhar no escritório da antiga Empresa Industrial de Chapelaria em S. João da Madeira.

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A 9 de abril de 1970 começou à experiência aquele que viria a ser o seu primeiro emprego e por lá ficou até 1996 quando a empresa encerrou uma era industrial marcada pelos anos de ouro, seguidos de declínio, dedicados à produção de chapéus, das sapatilhas Sanjo e de solas para as empresas de calçado da região.

Uma das histórias cravadas nas paredes da antiga empresa, atual Museu da Chapelaria, é a do dia em que Aldina Valente quebrou a regra que proibia as mulheres de usar calças. “Nessa altura, para o Estado Novo, usar calças era uma questão de empoderamento da mulher porque quem vestia calças eram os homens”, recordou a ex-secretária ao labor.

Como Aldina Valente tinha uma modista, um sentido de moda vanguardista impulsionado pela famosa loja “Porfírios” no Porto e nunca ficou limitada a um guarda-roupa com vestidos e saias tradicionais, ter direito a escolher o que queria vestir era para si algo normal e nada ousado. “Não tinha a noção que vir de calças era proibido. Nunca pensei que existia proibição”, esclareceu a ex-secretária, contando o momento tal como se o estivesse a reviver enquanto conversava com o labor no Museu da Chapelaria.

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Quando chegou de calças à empresa alguns colegas foram ter consigo e disseram: “Não podes vir de calças que é proibido”. Aldina Valente quis saber o porquê, ao que lhe responderam: “Porque nunca ninguém veio”.
Naquele dia “estava à espera que acontecesse alguma coisa, mas não aconteceu nada. Ficou tudo a olhar, mas não aconteceu nada”. Apenas e só “fui a primeira mulher a trazer calças para a empresa de chapelaria”. Não aconteceu nada no imediato, mas pouco depois. “Um grupo de colegas novas, com um sentido de moda avançado como o meu, também começou a usar calças no local de trabalho”. Mas a revolução do vestuário não se ficou por aqui. “Depois das calças, vim de minissaia” e, mais uma vez, “ninguém disse nada”, contou Aldina Valente. Quando levou as calças ou as minissaias, “não fazia aquilo por provocação. Era natural. A roupa não influenciou em nada o meu trabalho. Aliás, cada um deve vestir o que quer porque isso não influencia o que somos”, frisou a ex-secretária. “Eu tinha um espírito para o qual essa barreira não fazia sentido” e o certo é que tinha razão porque “fui andando e passado um tempo andavam todas”.

“Se a empresa tivesse continuado acabava aqui a minha carreira”

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Numa altura em que “tudo era manual” Aldina Valente tratava de processos administrativos da empresa que tinham sempre de “bater certo” com os da contabilidade geral que era feita no Porto para “não falhar com as contas ao Estado. Havia a preocupação em cumprir”, lembrou a ex-secretária que também foi responsável por fazer “uns livros muito bem escritos, com uma letra muito bonita não fosse vir a fiscalização”. Mais tarde, Aldina Valente passou a tratar dos clientes que chegaram a ser cerca de 3.000 nacionais e estrangeiros. Além do trabalho de escritório que envolvia contactar os clientes quando entravam em incumprimento, receber e enviar faturas, a ex-secretária também tratava das letras e dos depósitos bancários. “Quando entrei a empresa estava no auge. Havia uma disciplina muito grande em relação aos nossos chefes. Não levantávamos a cabeça, fazíamos vénia. Mas também aprendemos muito. Havia muita educação e muito respeito”, apreciou Aldina Valente. “Aprendemos muito com o senhor Ricardo Stockler. Foi muito bom chefe. Ele puxava por nós. Se tivesse de chamar atenção não criticava de maneira a fazer-nos sentir mal”, salientou a ex-secretária. Dentro das limitações impostas ao papel da mulher na sociedade naquela época, Aldina Valente nunca se sentiu desvalorizada na antiga empresa de chapelaria. “Senti-me muito bem integrada”, defendeu a ex-secretária. Desta sua experiência no mercado do trabalho só tem a dizer bem. “Gostava do que fazia. Era muito trabalho, mas o ambiente era bom. Se a empresa tivesse continuado acabava aqui a minha carreira”, confessou Aldina Valente ao labor.

 

“Pertencia à Juventude Rebelde”

Uma outra evidência da “mentalidade aberta” de Aldina Valente é sua ligação à Juventude Rebelde. “Pertenci à Juventude Rebelde” que era constituída por “grupos de ação católica que andavam com os padres a cantar músicas de intervenção. Juntávamo-nos com outras igrejas e grupos e andávamos a cantar canções revolucionárias”. Mais uma vez o objetivo era “abrir horizontes” para “melhorar a vida de todos”, constatou Aldina Valente, confidenciado que nunca foram apanhados pela polícia, mas por “sorte”.

 

Museu da Chapelaria comemorou 16 anos

A Empresa Industrial de Chapelaria (EICHAP) foi fundada em 1914. O encerramento acontece em 1996. Ano em que a Câmara Municipal de S. João da Madeira comprou o espólio industrial proveniente do encerramento de diversas unidades fabris relacionadas com a chapelaria. O edifício da EICHAP é onde está hoje o Museu da Chapelaria (http://www.museudachapelaria.pt/pt/home). Depois de 10 anos de projetos de investigação sobre a indústria chapeleira, é chegada a hora de tornar o sonho em realidade. O Museu da Chapelaria foi inaugurado no dia 22 de junho de 2005 com a presença do então Presidente da República, Jorge Sampaio, sendo presidente da câmara Castro Almeida.

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